19.4.08

Quem sou eu?

Não sou quem me espia de dentro dos espelhos; não sou quem dizem os outros; não sou a persona que desempenha diversos papeis no palco da sobrevivência.

Um dia li e me identifiquei com o macunaíma da literatura italiana, Vitangelo Moscarda, o anti-herói da obra de Luigi Pirandello em “Um, nenhum e cem mil”.

No livro, a mulher de Moscarda observa que o nariz do marido pende para a direita e ele se surpreende que não tenha notado antes. Moscarda vai ao espelho e enquanto se analisa, desperta: ele não se conhece.

Se para os outros eu não era o que até agora havia pensado que era para mim, quem eu era?

Sua inquietação era socrática, shakespeariana, psicanalista: será que posso mergulhar até as profundezas do ser para conhecer-me?

Hoje, com 54 anos descubro que o que sei de mim é a ponta de um iceberg; permaneço, noventa por cento, submerso no inconsciente.

Vivendo, eu nunca havia pensado na forma do meu nariz. No tamanho, se grande ou pequeno; ou na cor dos meus olhos; na largura ou estreiteza da minha testa, e assim por diante. Aquele era o meu nariz, aqueles, os meus olhos, aquela, minha testa; coisas inseparáveis de mim, nas quais, entregue a meus afazeres, absorvido por meus pensamentos, abandonado a meus sentimentos, eu não podia pensar.

Quem sou eu? Sou o que colocaram dentro de mim: o filho que pais desejaram bem sucedido; o menino que amigos precisavam para xingar; o paquera que a namoradinha usou para gabar-se; o testemunho que o pastor se valeu para convencer-se ungido.

Mas chegou o dia em que tive que encarar o espelho e perguntar ao sujeito desconfiado que me olhava lá de dentro. – Hei, você, precisamos conversar sério:

A idéia de os outros viam em mim alguém que não era eu tal como eu me conhecia, alguém que só eles podiam conhecer olhando-me de fora, com olhos que não eram os meus e que me davam um aspecto fadado a ser sempre estranho a mim, mesmo estando em mim, mesmo sendo o meu para eles (um “meu” que, portanto, não era para mim!), uma vida na qual, mesmo sendo a minha para eles, eu não podia penetrar, essa idéia não me deu mais descanso.

Como suportar em mim este estranho? Este estranho que eu mesmo era para mim? Como não o ver? Como não o conhecer? Como ficar para sempre condenado a levá-lo comigo, em mim, à vista dos outros e no entanto invisível para mim?


Quem sou eu? Brasileiro, orgulhoso e envergonhado; cearense, marginal e perspicaz; filho do Dote anarquista e corintiano; nascido da Glícia artesã e briguenta; amigo de beatas, mas criado na rua; estudante de seminário e fascinado por coxias de teatro.

Portanto, eu era assim, haviam-me feito assim, daquele barro. Não dependia dele ser de outro jeito, ter uma outra estatura. Podia, claro, alterar em parte o seu aspecto: raspar os bigodes, por exemplo. Mas agora era assim. Com o tempo, ficaria calvo ou grisalho, rugoso ou flácido, desdentado. Alguma desgraça poderia inclusive desfigura-lo, meter-lhe um olho de vidro ou uma perna de pau. Mas agora era assim.

Quem sou eu? A projeção alheia; amado, reverenciado e invejado; odiado, rejeitado e desprezado. Não tenho escolha – ninguém tem – ; poderia ser outro, mas fui escravizado pelos muitos que me habitam. Todos querem prevalecer: o herói que cativa; o vilão que ojeriza; o covarde que merece repulsa. São muitos dentro de mim querendo ser eu.

Vivendo eu não representava a mim mesmo nenhuma imagem de mim. Por que então deveria me ver naquele corpo ali [diante do espelho] como uma imagem necessária de mim?

Aquela imagem estava ali em frente, quase inexistente, como a aparição de um sonho. Mas eu podia muito bem não me conhecer daquele modo. E se eu nunca tivesse me visto num espelho, por exemplo? Será que, nesse caso, eu não continuaria a ter dentro daquela cabeça ali, desconhecida, os meus mesmos pensamentos? Mas claro, e muitos outros.

Quem sou eu? Caçador de mim; arqueólogo de reminiscências; lapidador de emoções; profeta de futuros impossíveis. O que restará de mim uma vez subtraída a minha imagem pública? A reflexão de Moscarda é também minha, aprendi:

1. que não sou para os outros o que até agora pensava que fosse para mim;

2. que eu não posso me ver vivendo;

3. que, não podendo me ver vivendo, fico alheio a mim mesmo, isto é, como alguém que os outros podiam ver e conhecer, cada um a seu modo, mas eu não;

4. que é impossível colocar-me diante desse estranho para vê-lo e conhecê-lo, pois eu não posso me ver, mas já o vejo;

5. que o meu corpo, se o considerasse desde fora, é para mim como uma aparição de sonho, uma coisa que sei que vive e que fica ali, à espera de que alguém a leve;

6. que, assim como eu tomo este meu corpo e faço dele a cada vez o que quero e sinto, assim os outros podem tomá-lo para lhe dar a realidade que querem;

7. que, enfim, o meu corpo em si mesmo é a tal ponto nada e a tal ponto ninguém, que um fio de ar pode fazê-lo espirrar hoje e, amanhã, levá-lo embora.

Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim

Leia +

Nenhum comentário:

Blog Widget by LinkWithin