18.5.08

A mui piedosa esquerda cristã

Os cristãos se movem na história pela memória da civilização que emergiria do jardim do Éden, sem o pecado original, e pela antevisão do que teremos na Nova Jerusalém, quando os efeitos da queda forem erradicados. Já na revelação os crentes não podem deixar de atentar para a mensagem do Antigo Testamento, tendo Israel como povo de Deus: o Ano Sabático e o Ano do Jubileu, a proibição da escravidão, o amparo à viúva, ao órfão e ao estrangeiro, a terra como sendo de Deus, proibida a sua propriedade perpétua, tida como instrumento de produção para o alimento de todos. O pecado não era só individual, mas das nações, famílias e governantes.

O reino de justiça e de paz tem o seu “já” na história e o seu “ainda não” após o juízo final. O primeiro fruto do Espírito Santo é o amor. Não somos salvos por obras, mas para elas, pois sem elas a fé seria morta. A igreja primitiva foi uma comunidade de partilha de bens e mordomia do que Deus nos confia. O critério de julgamento será pelas evidências éticas sociais: “tive fome”, “tive sede”.

Na história da igreja esses valores foram cultivados. Entre os Pais da Igreja, Basílio, Ambrósio, João Crisóstomo, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e Agostinho de Hipona advogaram a justiça social e o bem comum. Em seu texto Naboth e o Pobre, Ambrósio escreveu: “Não é teu o bem que distribuis aos pobres, apenas restituis o que é dele. Porque tu és o único a usurpar o que é dado a todos para o uso de todos”.

A Reforma Protestante veio com o nacionalismo europeu, defendendo os interesses de cada povo contra a opressão dos poderes supranacionais: o papado e o sacro-império. A doutrina da vocação em Lutero, ou da dignidade do trabalho em Calvino — e do valor da educação para ambos — tiveram um impacto na civilização, com o capitalismo superando o modo de produção feudal, abrindo caminho para a democracia liberal e sendo criticado por movimentos como os Niveladores (1647-1650), socialistas (parlamento, cidadania, sufrágio universal, contra os monopólios), e sua dissidência, os Cavadores, comunistas, liderados por Gerrard Winstanley, autor da Lei da Liberdade.

No século 17, esses evangélicos, defensores de um pós-capitalismo, acreditavam que, no que concerne aos meios de produção, “a propriedade privada, em si mesma, constituía a principal causa do mal e de todas as formas de abusos e corrupção social”.

O reavivamento inglês, a partir de Wesley, incluindo o abolicionismo e o reformismo social de Wilberforce e da Paróquia Anglicana de Claphan, são marcas de uma visão integral do pecado, do evangelho e da missão, cujo legado seria dilacerado pelo que David Moberg denominou de “A Grande Reversão” — os evangélicos, reagindo ao “evangelho social”, universalista e de teologia liberal, foram para o outro extremo com um “evangelho individual” descarnado e insensível, ambos antibíblicos.

Enquanto isso surgiu uma esquerda cristã na Igreja de Roma, com os padres Lammenais e Lacordaire. A própria instituição, com a encíclica Rerum Novarum, abandonaria os seus vínculos com o absolutismo e assumiria os novos desafios sociais. Entre os protestantes, os movimentos do socialismo religioso e do socialismo cristão foram corajosas propostas.

Na Igreja de Roma, pensadores como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e Gabriel Marcel lançaram as bases do pensamento humanista cristão e do solidarismo, com grande influência no Brasil do pós-Segunda Guerra aos anos 60, agora resgatados pelos estudos de Michel Lowi.

Os termos direita e esquerda surgiram na Assembléia Nacional francesa pós-revolucionária (1789) para designar os defensores e os opositores do antigo regime ou do novo regime. Naquele contexto, a então esquerda seria direita hoje. O marxismo estava longe de existir, e a ditadura do (sobre o) proletariado perseguiria o pensamento de esquerda existente antes, em separado, e depois dele, particularmente os religiosos. Harold Laski afirmou: “Democracia sem socialismo não é democracia; socialismo sem democracia socialismo não é”.

Diante do aparente triunfo do pensamento único, Norberto Bobbio afirma que sempre haverá uma esquerda, formada pelos inconformados com as desigualdades não-naturais.

A inconformação com os males do presente século, o compromisso com os valores do reino de Deus, a promoção da liberdade responsável, da democracia representativa e participativa, da justiça social e da soberania dos povos diante dos impérios políticos e econômicos, e de um modo de produção não baseado em um darwinismo social — com a sobrevivência dos mais fortes e mais aptos —, mas na solidariedade — com todo o capital nas mãos de todos os trabalhadores, e não do Estado ou de outros seres —, continuam a ser o ideário de milhares de nascidos de novo, piedosos e ortodoxos, no exercício responsável da cidadania, orando “seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”.

Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo – desafios a uma fé engajada.

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