17.5.08

Profanação

Eu fui criado numa cozinha, com a coriza das panelas e o chamego da fumaça nos cabelos.

Entro em restaurante para fazer amigos. Já querendo conhecer o fogão. Com a esperança de chamar o garçom pelo nome, desejando que ele recite meu prato de cor antes mesmo que aponte o dedo e abra o cardápio. Quando gosto, repetirei a escolha. Demoro a enjoar. O azar é que posso permanecer num pedido por anos, sem cogitar outras vizinhanças.

Beijarei a cozinheira para agradecer um benfazejo, beijarei o chef pela alquimia de temperos. Serei dado, espantosamente sorridente.

Não vou para comer, vou para conviver. Restaurante é onde abro as guardas e falo bobagens mais do que costumo escrever aqui. Não há um lugar que me sinta mais à vontade do que no balcão de um bar aguardando uma mesa vaga. Um homem com fome é sincero como nunca antes.
Se me apaixono por um restaurante, prometo boca-a-boca, megafone, gritaria. Improvisarei na tolha um QG de minhas batalhas emocionais, com manchas de vinho e farelos de rolha. Serei fiel até que a azia me separe.
Minha facilidade em ampliar a família provoca embaraços. Desilusões. Não poderia ser permitida a profanação de lugares afetivos.

Não foi uma, mas várias vezes em que levei colegas para um restaurante de minha preferência. Para apresentar uma anunciação de Nossa Senhora com hora marcada. Convertê-los a uma seita. Presumia que lamberiam os beiços e me agradeceriam com canto gregoriano. Suspirando e gemendo em louvor.

É deprimente quando a alegria não se renova. Com a visita, a comida nem chega perto daquele que provamos um dia. No final, parece que sou exagerado, louco de pedra, extravagante.

Convenci Marcelino Freire a comer um tortéi com molho de panela em Porto Alegre. Não contive a ansiedade. Nem me servi para assisti-lo. Espalhou o guisadinho como quem pretende alargar a dimensão da porcelana. Ele engoliu uma massa recheada de moranga, duas e nenhum sinal de contentamento.

- Bom, Marcelino?

- É, bom...

Não, não ambicionava que fosse bom, e sim divino.
Impraticável viver um milagre sozinho, milagre é para ser repartido, exige testemunhas para virar fofoca. Um milagre sozinho é dor guardada. Eu me tornei o dono do restaurante tentando agradar um crítico do guia Quatro Rodas. Subserviente, babaca, atrapalhado.

Marcelino ocupou-se de conversa, esqueceu o local, não repetiu a porção. Estava realmente apática. Longe daquela que me hipnotizou.

Tenho certeza que dali por diante prosseguiu a amizade comigo por absoluta generosidade.

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