– Você pode comer livremente de todas as árvores do jardim – orienta o criador ao Homem que não foi criança, – mas o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal você não deve comer. No dia em que comer dele você certamente morrerá.
Pode ser necessário salientar que, em termos dramáticos, o enunciado da proibição (”nunca faça tal coisa”) é muitas vezes mais importante do que a ameaça complementar (”caso contrário tal coisa ocorrerá”). Para impulsionar a narrativa a proibição basta; a interdição já é conflito (isto é, atração) suficiente. Na maior parte das histórias, de Prometeu ao herói de Gremlins, o personagem só vai conhecer as conseqüências da sua transgressão depois de transgredir; ele ouvirá o “nunca faça tal coisa” sem ter verdadeira idéia do “caso contrário tal coisa ocorrerá”.
Deus, no entanto, oferece ao Homem a essencial proibição juntamente com a não essencial explanação complementar. O que implica Adão conhecer previamente o resultado da sua transgressão? Não seria suficiente a austera proibição?
De tudo que poderia ser dito sobre o assunto, e não é pouco, deve bastar o seguinte: a narrativa não existe para o protagonista, existe para o leitor.
E o leitor, incrivelmente, somos eu e você.
Nessa história a tensão inerente ao conflito é reforçada porque sabemos muito mais do que Adão jamais saberá; do nosso lugar na janela indiscreta vemos uma ameaça que Adão não pode ver, e esse prenúncio de tragédia aparece na história para nos tocar, não a ele. Adão talvez não saiba o que é morrer. Ele provavelmente não terá ferramentas para entender o conceito mesmo que lhe tenha sido explicado, mas – aqui está o ponto – nós temos.
Não apenas isso: como a narrativa existe para o leitor, a explanação “quando comer dele você morrerá” está ali para que saibamos sem sombra de dúvida que o propósito da história é explicar como num mundo perfeito a morte acabou encontrando o Homem.
A questão essencial, naturalmente, está em determinar se a morte é punição pela transgressão ou mera conseqüência dela. Para a teologia a morte é punição pela transgressão, pelo que a teologia é obcecada com a idéia da expiação do pecado. Para a narrativa, que não emite juízo, a morte é conseqüência mecânica da transgressão, não sua inevitável recompensa moral. Um interruptor foi lamentavelmente acionado, com resultados terríveis para todos os envolvidos. Haverá como consertar a situação e recuperar em alguma medida a honra dos protagonistas?
A teologia é obcecada com a expiação do pecado, mas a narrativa é obcecada com a expiação do pecador.
A Bíblia é narrativa.
Paulo Brabo, no blog A Bacia das Almas.
25.5.08
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