18.6.08

Coração de Leão (1)

Recebi c/ alegria o convite p/ entrevistar Ricardo Gondim. Ele tem lugar cativo neste espaço não apenas por meio de suas reflexões sempre instigantes, mas também pela expressiva quantidade de colaborações de temas diversos que me envia c/ regularidade.

Foram mais de duas horas de papo agradabílissimo, apesar de alguns temas p/ lá de espinhosos. Da emoção incontida em certos momentos às confissões + íntimas, o coração permaneceu aberto, franco e generoso.

Um trecho inédito que não enviei p/ a revista. Ao discorrer s/ o futuro da igreja, Gondim enfatizou a importância da convivência em grupos pequenos, não apenas nas chamadas "células". "Coisas surpreendentes podem surgir em meio a um grupo de cristãos reunidos, por exemplo numa mesa de bar como acontece no Zona da Reforma", disse. "E com uma cerveja na mesa", arrematou. =]

Taí a íntegra do papo.

Fim de culto na Betesda. A igreja ocupa um imenso galpão na zona sul de São Paulo. Ricardo Gondim chama um dos pastores para fazer a oração final e deixa a plataforma a passos rápidos enquanto a congregação está de olhos fechados. No entanto, em vez da saída à francesa, ele opta pela “versão Ceará”, postando-se à porta do templo para cumprimentar as pessoas. Tudo como manda o mais autêntico figurino presbiteriano. Posa para fotos, autografa livros e distribui sorrisos e abraços para aos que se comprimem à sua volta.

Para desapontamento de inúmeros desafetos, o escritor e pastor parece revestido de uma espécie de couraça contra os rótulos que lhe são atirados com freqüência. “Arrogante”, “herege”, “polêmico” e “mundano” são apenas alguns, digamos, publicáveis. Após receber muitos protestos sobre as supostas heresias defendidas por seu articulista, a revista evangélica Ultimato se pronunciou no ano passado (edição 308) usando dois adjetivos sobre os textos de Gondim: “Apreciados” e “saudáveis”.
Um rápido exame nas dezenas de textos de seu visitadíssimo site já é suficiente para identificar algumas preferências pouco (ou nada) ortodoxas para um líder pentecostal. De Vinicius de Moraes a Lenine, a lista para lá de eclética inclui nomes como Almodóvar, Rubem Alves e Simone Weil. Com o fôlego de quem correu onze maratonas e dezesseis vezes a São Silvestre, Gondim revela que a corrida funciona como espécie de exorcismo para ele e para os amigos que o acompanham. “Após vários quilômetros percorridos, costumamos dizer que suamos vários demônios”, graceja.

Ao receber CRISTIANISMO HOJE, cercado de livros numa filial da Livraria Cultura – templo-mor das letras na capital paulista –, Ricardo Gondim olhou na janela para o prédio da TV Globo e perguntou se Kixapágua (entidade que atua por trás da Vênus Platinada, segundo o apóstolo da Igreja Renascer, Estevam Hernandes) não iria atrapalhar o papo. Das risadas iniciais à emoção ao tocar em dores ainda sensíveis, o pastor falou sobre muitas coisas, inclusive de suas mágoas.

CRISTIANISMO HOJE – Agora em maio, duas grandes catástrofes – o ciclone em Mianmar e o terremoto na China – assustaram o mundo e novamente levaram os crentes a pensar sobre as razões do sofrimento humano. Como o senhor, que na época do tsunami ocorrido na mesma Ásia em 2004 causou polêmica com um artigo sobre as tragédias, analisa a questão do sofrimento humano diante da existência de um Deus que se apresenta ao homem como pleno de amor?

RICARDO GONDIM – Discordo da explicação fundamentalista de que “todas as tragédias são provocadas pelo pecado original”. É um simplismo cruel e inútil. Como escrevi inúmeras vezes, não consigo acreditar numa divindade que tudo ordena e orquestra. Em Os irmãos Karamazov, de Dostoievski, Ivan diz num certo momento: “Há uma coisa no Universo que clama: o choro de uma criança”. O Deus da Bíblia não é sádico de provocar a morte de milhares de vidas. Exatamente pelo fato de Deus ser amor, ele possibilita a felicidade e a infelicidade. Nossas escolhas, decisões e articulações sociais interferem nos resultados. Ao mesmo tempo, a vida é trágica e feliz. Deus é sempre parceiro do homem nessa busca de tornar a vida mais intensa e prazerosa. Como afirma André Comte-Sponville, “somos os únicos seres do Universo que podem humanizar ou desumanizar”.

Na época do tsunami, teólogos se insurgiram contra alguns de seus textos, desfiando uma série de argumentos. Hoje, o senhor é mestrando em ciências da religião na Universidade Metodista. É importante estudar teologia?

Depende de como você entende a teologia. Deus não pode ser dissecado. Como disse Paul Tillich, “Deus está além de Deus”. Entendo teologia como o estudo e a maneira como organizamos nossa vida a partir da compreensão que temos de Deus, ou, lembrando Rudolf Otto, do nosso “encontro com o sagrado”.

Mesmo entre as pessoas que não professam nenhuma religião, a sucessão de fatos trágicos e de episódios de crueldade humana explícita, como o assassinato da menina Isabella Nardoni, sugerem que algo muito grave e de contornos ainda indefinidos esteja acontecendo. O atual recrudescimento da brutalidade humana aponta a proximidade dos eventos escatológicos bíblicos ou são apenas novas expressões de um quadro que sempre houve?

Todos esses fatos recentes são apenas expressões de algo que sempre aconteceu. Repare que, ao longo da história, foram comuns perseguições contra judeus, hereges, escravos... A própria Reforma Protestante foi um episódio violento. Em Casa grande & senzala, Gilberto Freyre discorre sobre o que algumas senhoras faziam por ciúme da beleza das escravas. Quebravam-lhe os dentes com chutes ou mandavam-lhes cortar os peitos. De certa maneira, creio que o que aumentou foi o nível de intolerância social à brutalidade – por isso a comoção e a revolta provocadas por esses episódios.

Quando foi a última vez que o senhor chorou?

Na semana passada, durante reportagem na TV sobre o terremoto da China. Depois de quatro dias, conseguiram resgatar uma criança com vida. Um pai tentou invadir a ambulância ao imaginar que era seu filho. Chorei ao ver o desespero daquele homem.

Quais são as principais diferenças entre o Ricardo Gondim de hoje e aquele que começou o ministério há três décadas?
Eu era um homem com um idealismo ingênuo. Não sabia diferenciar ilusão e encantamento. Ilusão é baseada em fantasias; já o encantamento nasce da observação da realidade. Continuo encantado com o Evangelho, com “E” maiúsculo.

Então, quem é Ricardo Gondim?

Um homem introspectivo e nostálgico. Gosto de ambientes intimistas e tenho profunda necessidade de estabelecer relacionamentos significativos, sem trocas ou quaisquer tipos de interesses.

Nos últimos cinco anos, o senhor tem se notabilizado como um crítico do segmento evangélico. Iniciativas como o blog Outro Deus e a maciça produção de textos nesta linha têm marcado seu ministério. Até que ponto isto se confronta ou complementa sua atuação pastoral?

Comecei a escrever pelo fascínio da própria literatura, cuja excelência intrínseca é maior que a da oralidade. Esse exercício adensa pensamentos e complementa idéias que surgiram nas mensagens. Todas as semanas posto textos inéditos e meu site recebe cerca de 1.400 visitantes por dia e mais de 1,5 mil e-mails por mês.

Em seus pronunciamentos recentes, o senhor revela a vontade de afastar-se de tudo e chega a sugerir que as pessoas não compareçam sequer aos eventos que promove. No entanto, o senhor continua participando e promovendo eventos destinados ao público evangélico e permanece na direção da Betesda – uma igreja com corte social de classe média urbana, presença na mídia e atuação institucionalizada, como tantas outras denominações cuja existência legitimam suas críticas. Não é um paradoxo?

É preciso definir os acampamentos. Há um movimento evangélico que mostra ter exaurido as forças. Alguns sinais dessa exaustão são a falência ética e as campanhas constantes para trazer pessoas à igreja. Para mim, agenda cheia demonstra fraqueza. Para fidelizar o público, há gente buscando atrações cada vez mais fantásticas. No caso da Betesda, é explícita a posição de não repetir modelos falidos e teologias engessadas da década de quarenta. O que faço hoje são eventos voltados para a própria igreja. Recentemente, decidi suspender o Congresso de Reflexão e Espiritualidade, voltado basicamente para pastores, que acontece há vários anos. E não compactuo com nenhum messianismo do tipo “impactar a nação por meio de eventos”.

Falar de gigantismo e inchaço da Igreja brasileira tornou-se atitude recorrente nos últimos 20 anos, período no qual a população evangélica do país quase triplicou. Quais são, na sua opinião, os efeitos de tal avanço? Existem premissas equivocadas na tradição evangélica e na práxis desta Igreja?

Alguns efeitos são perigosíssimos. A Igreja passou a ser vista como outra força, entrando na disputa de poder. O crescimento acentuado enfraqueceu o zelo pelo conteúdo da mensagem. Isso promoveu sentimentos de ufanismo e triunfalismo desmedidos. Mas não ocorreu avivamento. O que aconteceu foi uma confluência de fatores sociológicos que explicam o crescimento do rebanho. Não é necessário enfatizar princípios espirituais para explicar o aumento do número de evangélicos. (continua)

5 comentários:

Volney Faustini disse...

Nada mais certo, correto e cristão do que ir direto ao cara e fazer perguntas e esperar suas respostas.

E mais - publicá-las!

Parabéns ao Gondim que abriu as portas e janelas para que a gente conheça um pouco mais dele.

E o mais importante - foi sincero e transparente, como sempre.

J.T.Parreira disse...

Como jornalista evangélico, devo dizer mais como poeta do mesmo segmento, compartilho com Gondim as suas posições, sobretudo as intimistas face ao que acontece hoje no Orbe e para o que certa Igreja apenas tem o rigor de uma imagem destrocida do Deus da Bíblia Sagrada. Participo também, no plano introspectivo, das lágrimas de Gondim. Há uma passagem definitiva do «Calígula», de Alberto Camus - meu autor preferido -, em que o imperador diz o que de mais certo algum dia afirmou: «Os homens morrem e não são felizes!».
Cumpre à Igreja, e o EVANGELHO está fazendo isto, modificar esse estado universal de coisas.

Anônimo disse...

adorei a ultima resposta! mas acho que houve um pequeno avivamento, sim. afinal, amigos, a igreja é o corpo de Cristo, e mesmo que o maior picareta esteja no pulpito, Deus conhece os coracoes dos servos.

William Barter disse...

A única esperança do mundo é o Evangelho; e Ele não poderá alcançar nenhum alvo se não passar primeiro, e com intensidade, por mim. A igreja não é grande ou pequena, ela é uma só, espalhada por toda a Terra, recheada de gente que leva a carga umas das outras; pessoas separadas para fazer conhecida a multiforme sabedoria de Deus. Pois, Ele nos chamou para as boas obras e nos abençoou com "toda" a sorte de bênçãos nas regiões celestiais. A igreja não é um símbolo. Ela é um organismo vivo, que se alimenta e que, principalmente, pensa; porque o nosso culto diário deve ser racional; é feita de homens e mulheres que decidiram espontaneamente entregar seu livre-arbítrio nas mãos do Senhor, já que a Sua vontade é boa perfeita e agradável.

Rios & Rios Consultoria disse...

Sei que para o mundo evangélico isso soaria como uma coisa abominável...
mas, sou fã do Gondim! Leio com frequencia suas postagens em seu site, acho que ele é um homem muito sensato e coerente no que diz, precisamos de pessoas assim, num mundo onde as pessoas procuram várias drogas para se satisfazem , e uma delas, que vicia muito, é a religião.
Gondim é uma expressão viva do respeito e da tolerância, um homem de Deus!

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