28.6.08

Loucura com Deus

O italiano já não encontrava mais graça ao escutar o relato. O padre era uma criatura digna de descrédito. Confirmava o que tinha ouvido dizer: o religioso enlouquecera, esquecendo suas devotas obrigações. Várias vezes se ouvira o sacerdote insultando Deus pelas ruas públicas. Morria uma criança, indefesa contra o sofrimento, e Muhando saía da igreja e desafiava o Criador, ofendendo-o em frente de todos. Chamava-lhe os piores nomes, desafiava-o a pente grosseiro.

- É verdade que ofende Deus?

- Qual Deus?

- Bom... Deus.

- Ah, esse. É verdade, sim. Eu insulto-O quando ele se descomporta.

Tinha razão para essa intimidade - ele e Deus eram colegas, sabedores de segredos mútuos. Quando ele bebia, Ele bebia também. Por isso ele não rezava a Deus. Antes, rezava com Deus.

- Sabe onde é a minha verdadeira igreja? Sabe? É junto ao rio, lá no meio dos caniços.

Subiu a um caixote e espreitou pela janela. Chamou-nos para que espreitássemos.

- Veja. É ali que converso com Deus. - Por que ali? - É ali que estão as pegadas de Deus.

Mia Couto, em O último vôo do flamingo (Companhia das Letras).

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