2.6.08

Multiplicação dos pães

"É melhor a ação que garante a felicidade para o maior número de pessoas"
Francis Hutcheson (1694-1746), filósofo de origem escocesa nascido na Irlanda


Em março deste ano, a pediatra e sanitarista catarinense Zilda Arns Neumann, de 73 anos, recebeu da Ernst & Young o prêmio Empreendedor do Ano, apoiado por Época NEGÓCIOS, na categoria responsabilidade social.

Indicada por sócios e executivos da consultoria juntamente com outras oito personalidades brasileiras, ela foi eleita por unanimidade. A comissão de jurados atribuiu o reconhecimento aos resultados obtidos pela Pastoral da Criança e à sua "capacidade empreendedora de liderar pessoas em prol de um país com menos desigualdades sociais".

Em 25 anos, a Pastoral conseguiu expandir seu programa de ação social para 43 mil municípios brasileiros, além de outros 17 países. No Brasil, o time de voluntários soma 270 mil pessoas que batalham para reduzir a mortalidade infantil e a desnutrição nas comunidades mais pobres. Desde 2004, o modelo foi transplantado para o atendimento à terceira idade, com a criação da Pastoral do Idoso, que hoje assiste 109 mil pessoas.

Com quatro indicações ao Prêmio Nobel da Paz e uma série de outras condecorações na prateleira, como o Opus Prize (concedido por uma liga de universidades católicas americanas), Zilda diz que seu maior prêmio são as 5 mil vidas salvas anualmente. "Costumo brincar que todas as crianças que livramos da morte são o Nobel que recebemos a cada ano."

O exército de voluntários da organização atende 1,9 milhão de crianças com até 6 anos de idade, além de 100 mil gestantes. Para sua fundadora, o que move essas pessoas é a possibilidade de desenvolver os próprios talentos em favor dos pobres e, com isso, exercer a espiritualidade de maneira efetiva. "Quem dedica seu tempo a uma causa, ou a pessoas que precisam de apoio, coloca em prática a essência da religião, que é a fraternidade", afirma.

Para ela, o trabalho voluntário carrega a mística cristã do amor sem limites e auxilia quem o exerce a encontrar o equilíbrio necessário entre vida pessoal e profissional. "Ao desenvolver a espiritualidade em contato com o próximo, criamos referências importantes, que nos auxiliam a solucionar questões emocionais complexas."

Zilda afirma que o trabalho voluntário também contribui para disseminar uma proposta de paz. Para que qualquer pessoa possa ter uma índole pacífica, é necessário que ela seja bem cuidada. "Ao se dedicar às crianças, aos pobres, aos idosos e aos doentes, o voluntário nada mais faz do que propagar harmonia", diz.

Em sua visita a Guiné-Bissau, no ano passado, ela viu isso de perto. "Fiquei emocionada ao ver muçulmanos, batistas e católicos trabalhando lado a lado nas comunidades como se fossem irmãos de sangue, em prol de uma causa comum." Cuidar do outro também tem efeitos sobre a auto-estima e permite que se conquiste uma compreensão diferenciada sobre a condição humana.

SIMPLICIDADE

Nos 43 mil municípios brasileiros em que atua, a Pastoral conquistou o que nenhuma política pública havia conseguido: reduzir drasticamente as taxas de mortalidade infantil e de desnutrição. A cada mil crianças nascidas vivas, morrem apenas 13 (ante 22,5 na média nacional), e o índice de desnutrição foi de 3,6% em 2007. Em 1991, o percentual médio nas comunidades atendidas era de 9,1%. Tudo isso é realizado ao custo mensal de R$ 1,68 por criança e por meio de iniciativas simples, como o incentivo ao aleitamento materno, dicas de alimentação e cuidados com a saúde, além do controle mensal do peso dos pequenos.

Zilda sempre diz que a inspiração para a Pastoral veio da passagem bíblica, narrada no evangelho de São João, na qual Jesus multiplica cinco pães e dois peixes em alimento suficiente para saciar 5 mil famintos. Seu foco na mobilização comunitária faz lembrar o provérbio de origem africana: a educação de uma criança requer a participação de toda a aldeia.

Viúva, mãe de cinco filhos e avó de dez netos, a idealizadora da Pastoral diz que o modelo implantado por ela em 1983 tem ainda uma outra inspiração que remete ao provérbio africano. Trata-se da pequena Forquilhinha, a cidade onde nasceu. Fundada no final do século 19 por seu pai, Gabriel Arns, e por um grupo de imigrantes alemães como ele, fica a 220 quilômetros de Florianópolis e tem hoje 20 mil habitantes. "Não conhecíamos governo, não havia polícia. Tudo era feito pela comunidade e as decisões eram tomadas em conjunto pelas famílias, pela igreja e pelas escolas", afirma.

Foi lá, onde viveu até os 11 anos de idade, que ela teve as primeiras experiências como voluntária. Ajudava a plantar jardins e alamedas pela cidade e cuidava de crianças durante os horários de missa. Seu pai queria que os 13 filhos se formassem professores e, em 1950, levou a família para viver em Curitiba, onde ficava a universidade mais próxima. Mas a tradição forquilhinhense não foi abandonada pelos Arns. Construíram uma quadra de esportes e uma horta ao redor de sua nova casa e compartilhavam o espaço com os vizinhos. Participavam também das atividades da Congregação Mariana, onde jogavam pingue-pongue, freqüentavam a biblioteca e assistiam a projeções de cinejornal.

Nessas sessões, Zilda assistiu a cenas de vítimas da malária na Amazônia tremendo em suas camas e sentiu despontar o desejo de aprofundar a experiência como voluntária e se tornar missionária. Mas foi quando viu as crianças em favelas no Rio de Janeiro que enxergou na medicina o caminho que buscava para ajudar as pessoas. Desde os primeiros anos de curso, atuou em hospitais de indigentes e construiu toda a sua carreira no setor de saúde pública, participando de momentos importantes para o país, como a descentralização dos postos de saúde e a vacinação durante a epidemia de poliomielite, ambas no início da década de 80.

Foi a partir de uma sugestão de seu irmão, o arcebispo emérito de São Paulo dom Paulo Evaristo Arns, que ela deu início ao trabalho da Pastoral da Criança, em 1983, com o apoio da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Ministério da Saúde, que até hoje é o seu principal financiador. Sua memória prodigiosa transparece na extensa lista de nomes de pessoas que a ajudaram ou inspiraram. Não escapa ninguém, do professor da pré-escola ao marido de uma antiga secretária, especialista em informática, que ajudou a criar o banco de dados onde são armazenados os 27 indicadores que avaliam trimestralmente os resultados do trabalho desenvolvido no Brasil e em outros 17 países.

Quando olha para a dimensão alcançada por seu projeto, agradece o engajamento de voluntários e de financiadores. Zilda diz que a transformação que promovem na vida dos beneficiados os torna referência em suas comunidades e famílias. "Também lhes traz uma felicidade que dificilmente poderia ser alcançada com realizações individuais."

fonte: Época Negócios

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