10.6.08

O cigarro é um sacramento

O ESCRITOR É UM cozinheiro que prepara uma refeição de palavras para o prazer dos leitores. Mas há livros em que a culinária toma a forma de antropofagia. Murilo Mendes sabia disso: "Quando eu não era antropófago -quando não devorava livros- por que os livros não são feitos com a carne e o sangue de quem os escreve?"Isso acontece de forma especial com os livros de memórias. Quem escreve memórias se oferece para ser devorado pelos seus leitores.

Pois é um aperitivo antropofágico o que Gabriel García Márquez nos serve num parágrafo do seu livro de memórias "Viver para Contar".

Vou transcrever: "Eu estava proibido de fumar por causa da pneumonia, mas fumava no banheiro, como que escondido de mim mesmo. O médico percebeu e falou sério comigo, mas não consegui obedecê-lo. Já em Sucre, enquanto tratava de ler sem pausa os livros recebidos, acendia um cigarro com a brasa do outro até não poder mais e, quanto mais tentava abandonar o cigarro, mais fumava. Cheguei a quatro maços diários, interrompia as refeições para fumar e queimava os lençóis quando dormia com o cigarro aceso. O medo da morte me despertava a qualquer hora da noite, e só fumando mais conseguia superá-lo, até eu decidir que preferia morrer a parar de fumar. Mais de 20 anos depois, casado e com filhos, eu continuava fumando. (...) Numa noite, durante um jantar casual em Barcelona, um amigo psiquiatra explicava a outras pessoas que o tabaco talvez fosse o vício mais difícil de erradicar. E me atrevi a perguntar qual seria no fundo, a razão, e sua resposta foi de uma simplicidade assustadora: "Porque, para você deixar de fumar, seria como matar um ente querido". Foi uma deflagração de clarividência. Nunca soube e nem quis saber a razão, mas esmaguei no cinzeiro o cigarro que acabava de acender, e não tornei a fumar mais nenhum, sem ansiedade e nem remorso pelo resto de minha vida."

Pena que ele, escritor, não tivesse sugerido uma explicação para esse súbito milagre: um vício mortal, bioquímico, que havia derrotado a força de vontade de um homem inteligente, desaparecendo sem deixar vestígios, ao ouvir umas poucas palavras.

Pois eu vou dar a minha explicação: as razões para o poder do cigarro não são só bioquímicas; são literárias e poéticas. O cigarro é um sacramento: é um objeto material que se transforma num objeto espiritual quando o fumante o liga a uma palavra poética. Descoberta essa palavra poética, o seu poder desaparece. Um cigarro é um portador de fantasias.

As empregadas, de manhã, em direção às casas das patroas, vão dando baforadas de fumaça. A fumaça marca o território da liberdade. Ao chegar ao emprego, seu cigarrinho terá acabado; a liberdade, também.

O executivo me explicava o fascínio do seu cigarro. De noite, só, no seu escritório, ele se transformava numa outra pessoa pelo poder das espirais de fumaça que o envolviam.

Estávamos, um grupo, num passeio de barco num rio próximo a Bancoc. Todos falavam inglês. Menos o barqueiro. Aproximei-me e começamos a nos comunicar por gestos. Foi então que ele, num gesto generoso de intimidade, ofereceu-me seu cigarro, molhado com saliva. Eu tinha de aceitar. Aceitei e dei algumas baforadas. Aquele cigarro falava que ele gostava de mim...

Rubem Alves, na Folha de S.Paulo.

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