LT – Uma característica marcante dos seus textos, a meu ver, está na escolha em retratar um universo de párias, excluídos e marginalizados, sem, no entanto, reduzir essas personagens à questão da miserabilidade existencial. O que podemos esperar de Rasif? Há uma linha-mestra conduzindo os contos?
MF – Na verdade, não são temas escolhidos por mim. Não sei bem dizer. É a forma de eu enxergar. Esse mundo pobre, doente, em que vivemos, sobrevivemos. É o mundo que temos. E a minha literatura não consegue fugir disto. A minha literatura está afetada por isto. Eu queria muito tratar de outros assuntos. Mas, quando vejo, um personagem vem gritar no meu ouvido. Sangrar à minha porta. Eu costumo dizer que eu escrevo para me vingar. De uma saudade, de um governo, de uma família. Eu preciso exorcizar alguma coisa. Não consigo ser um escritor frígido. Adoraria, um dia, escrever uma história passada no Planeta Vermelho, por exemplo. Na Cochinchina. Aguardemos... No meu novo livro, o Rasif, é a vez das guerras. Particulares e nucleares. Sempre tem alguém fodendo alguém no meu novo livro. Algum conflito sendo travado. Eu quero que o leitor, ao pegar o Rasif, tenha a impressão de estar com o fim do mundo nas mãos. É um livro quente. Fervente. Sem contar, faço questão de ressaltar e louvar, as gravuras presentes no livro. Rapaz, está bem bonita a edição. Por causa, sobretudo, da participação de Manu Maltez [artista paulistano]. Meu livro vem com as gravuras apocalípticas do Manu. Cheias de corujas, anjos nus, asas e urubus. Valerá a pena conferir. Formamos nós dois uma duplinha demoníaca, você vai ver...
LT – O título (belíssimo) é também uma clara homenagem a Recife. De que modo a cidade aparece no livro? Há nele algum traço de evocação memorialística ou você traça outros caminhos?
MF – Sim. Há uma referência recifense. E pernambucana. O nome “Recife” vem de “Arrecife”. Mas ambas palavras vêm do árabe: “Rasif” e “Arrasif”. Gostei quando soube disto. Quem me contou foi a amiga Adrienne Myrtes [também escritora, autora do livro de contos “A Mulher e o Cavalo”]. Porque eu estava falando para ela que o meu próximo livro tinha homem-bomba, tinha Afeganistão, Cabul, Sertânia [a cidade em que Freire nasceu]. Aí ela me contou isto. Eu não sabia. Adorei. Sem contar que eu quero muito ganhar dinheiro com este livro. Os livros árabes não estão vendendo feito quibe? Pois eu tenho a minha Árabia própria e nada mais justo que eu ganhe uns trocados com ela. Eu também quero colocar a minha pipa para voar. Enfim. Eu quero fazer essa provocação. E me animei com estas ligações malucas. Descobri, por exemplo, que “ciranda” é uma palavra árabe. Aí fui lá na música da lenda-viva que é a cantora Lia de Itamaracá: “estava na beira da praia / ouvindo as pancadas das ondas do mar”. Isso. Pancadas, chutes, cuspes para todo lado. Aí lembrei também do Manuel Bandeira, “num torpedo-suicida / darei de bom grado a vida”. É isso aí. Meu livro quer explodir. E tem mais: meu livro tem um subtítulo, Mar que Arrebenta. O nome “Pernambuco” vem do tupi-guarani, que quer dizer “onde o mar arrebenta”. Então vai ser isto: um livro que se lasca, se arrebenta, se lança lá do alto. E acaba sendo também um livro sobre minha terra, de forma truncada. Um livro escrito por alguém que não está mais no seu lugar de origem. Que fala outra língua. Que se sente um estrangeiro, sempre. É um livro também que coloca a questão da língua que falamos. Se entendemos mesmo o que falamos e o que ouvimos, sei lá.
trecho de entrevista de Marcelino Freire ao site Verbo 21. Inevitável perceber as diferenças de percepção em relação à "Veneza brasileira".
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