Existia uma vida nele que lhe era desconhecida. Esteve guardada por muito tempo, a espera de alguém que o fizesse juntar os pontos para enxergar o novo desenho, estampado ali na frente. Até então, vivia na resignação. Continha os sonhos abafados para que eles não mudassem o curso da realidade. Sua certeza, a única talvez, era de que ela sempre seria maior, mais dolorida, mais cinza, mais onipresente do que todas as outras coisas a sua volta.
Assim foi quando soube na notícia da morte do avô. Precisou rapidamente se desfazer da fantasia de pirata, não só das roupas e do tapa-olho. Mas de toda aquela alegria boba que de repente se tornou ridícula. Era como levar um tabefe no meio de uma boa gargalhada. Aos 10 anos tomou raiva de carnaval. E dali pra frente ser sério lhe pareceu a melhor alternativa para não passar por outra dessa novamente.
A morte, aliás, habitava o cômodo ao lado do seu, no pequeno apartamento que dividia com o pai, a mãe e a avó doente. Mas, dessa vez, não haveria fantasia para atrapalhar quando a notícia chegasse. E ela veio quando ele tinha 17 anos. Sem o pai por perto, teve que tomar todas as providências funerárias. Dali, aprendeu que a variedade de caixões é enorme e que se você não se mantiver atento, acaba levando o mais caro.
Tempos depois, a mãe adoeceu. O pai, de diferentes formas, sempre se manteve ausente. A ele, não restava muito. Sabia o peso que, mesmo sem querer, era inteiro seu. Pensou no rumo mais ordinário que a vida toma. Resolveu que iria se casar, deu entrada na compra de um pequeno apartamento na periferia da cidade. Pequeno, quente, longe. Mas não precisava de muito. Continuaria trabalhando, visitaria a mãe nos fins de semana, passearia com sua mulher. Não teve tempo para pensar sobre ter ou ter filhos. E por que pensaria? As coisas simplesmente iriam acontecendo.
Assim é a vida. Tentou mesmo acreditar nisso por algum tempo. E de novo a morte tomou- lhe mais um pedaço. O que morreu dessa vez foi o amor. Não chegou a casar, mas ficaram as dívidas do apartamento para administrar. Só que ele resolveu parar por ali mesmo. E matou aquele velho homem que nada tinha vivido, nada tinha experimentado e muito pouco sonhado. Deixou tudo para trás. Resolveu viver sem saber direito para que ou quem se vive. Tudo que era efêmero lhe atraía. Pequenos prazeres, casos curtos, amores rápidos, nada que tivesse objetivo e sentido. Até hoje vive assim. Uma vez lhe perguntaram se era mais feliz desse jeito. E com as poucas certezas que ainda tinha, pôde responder: não, claro que não.
ilustração: Claudio França
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2 comentários:
Podem até ser de m...
Mas acho que tem futuro.
Seu blog é perfeito, amei os textos e as ilustrações, parabéns pela organização dos textos!
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