6.9.08

Da morte do eu

Há muitas chaves para abrir uma porta. Há quem prefira não abrir. Houve uma época em que deixou de ser misteriosa e era preciso ir adiante. As indecisões da juventude, os sonhos de atingir a divindade ficaram para trás. Para os outros. Ela não sonhava, realizava sonhos. A diferença entre as duas atitudes: não sonhar, mas realizar. Ou sonhar e realizar. Tão diferente da hesitação juvenil.

O que a fazia ir para a frente era uma completa vida de adulta. Casa, marido, filhos, o seu lar. Mas já não era da geração de sua mãe, também podia se auto-realizar. Enquanto sustentava sonhos alheios, os seus também teriam vez. Aprendia a ter uma mente prática, executiva.

Não havia um Manual da Mulher Moderna para se inspirar. Mas muitas companheiras, como ela, pareciam ter lido essas instruções. O essencial era: não se deter demais. Não se deter demais? Não parar. Se houvesse, por exemplo, duas alternativas, decidir rapidamente. E quando as alternativas eram inúmeras, e subjetivas?

Há algum tempo havia aprendido a afastar delicadamente o subjetivo com toques objetivos. As questões viscerais, que fariam um pé afundar e outro, na areia movediça, eram levadas por redemoinhos, redemoinhos que levavam maus pensamentos. Porque ser boa pessoa implicava em.

Boa pessoa? Ninguém havia tocado neste assunto. Ser boa pessoa implicava em não se deter demais, não perguntar, não investigar. Se houvesse muitas chaves, escolheria apenas as que abririam a porta. E se todas abrissem ?

Carregaria o molho, não se deteria. Mas uma vez que se aceitou que havia muitas chaves que abriam a porta da verdade, devia seguir em frente. Quem havia dito a palavra? Então havia muitas verdades, não apenas uma? Poderia ser para cada afirmação houvesse não uma negação mas uma interrogação. E essa interrogação é que quebraria o fio dos dias, porque essa pessoa, homem ou mulher, que duvida, já não é boa. Em vez de cumprir seus deveres, fica horas e horas discutindo uma frase, uma sentença. Pertencerá ao reino dos malditos. Dos que duvidam. E acham que não existem afirmativas seguras. E o valor da positividade da vida?

O valor da positividade? Alguém é envenenado por interrogações que não levam a lugar algum porém a positividade é um valor que eleva as virtudes. Então os demônios. — aí entrava na areia movediça.

...o problema de uma vida feliz... uma vida feliz teria problemas? ...os demônios. Começava o embaraço quando tinha chaves, portas demais. O melhor era saber que tinha todas na mão e não abrir nenhuma. Ou apenas uma só, e confiante, por ela entrar para chegar ao céu.

Marília Kubota, no site Escritoras suicidas.

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