13.9.08

O tráfico de livros

Outro dia mesmo, eu achei um livro no banco vazio do meu lado no metrô. Não tinha jeito de bomba. Nem de esquecido. Ou enjeitado. Estava quase que tinindo de novo, se livro tina.
O título não era dos mais convidativos: A Spot of Bother, que poderíamos, ou ao menos, eu posso, traduzir por Uma Ligeira Chateação.

O autor era meu conhecido: Mark Haddon. Já lera um romance dele que fez o maior sucesso em 2003, The Curious Incident of the Dog in the Night-Time, ou seja, O Curioso Incidente do Cão Durante a Noite, que espero tenha sido traduzido para o português do Brasil.

Uma trama das mais originais, estilo corrido e simples, leitura das mais agradáveis e que fica com o consumidor por mais de seis meses. O que não é pouca coisa, se levarmos em conta o número de besteiras esquecíveis que nos cercam berrando tolices lá de dentro de suas brochuras ou encadernações.

O “curioso incidente” é sobre um menino que sofre de um tipo raro de autismo (o narrador dá cores aos dias, sofre com os excessos de suas memórias visuais e aurais, e mais, muito mais) que acaba se envolvendo numa aventura detetivesca das mais divertidas.

Tem, no garoto, qualquer coisa do Holden Caulfield de Apanhador no Campo de Centeio, do J.D. Salinger. O título, lembremos, é uma referência a uma frase célebre pronunciada por Sherlock Holmes num dos romances de Conan Doyle.

Vai daí que, assim como quem não quer nada, peguei do volume, com vistosa capa vermelha e comecei a folheá-lo, pronto para tacá-lo, quando ninguém estivesse vendo, dentro de minha inseparável sacola preta, onde carrego meus “bilongues” (saravá, Emília! A bênção, Monteiro Lobato!) e papelada à toa, como um sem casa à toa.

Já estava na bica de dar o bote ilegal quando dei com um aviso pregado com fita adesiva transparente na capa, logo abaixo do título, dando a volta no volume. Seus dizeres eram simples e diretos como o estilo do autor: “Eu não estou perdido… Eu sou seu de graça”. Por falar em “curioso incidente”, hem?

No interior do volume, logo na página 3, um adesivo me saudava com um simpático “alô” em quatro línguas. E prosseguia me informando o seguinte: “Eu sou um livro muito especial. Eu estou viajando pelo mundo afora fazendo amigos. Espero ter feito de você um desses novos amigos”.

Seguia em frente me convidando a digitar o código do livro num site, ou sítio, com o endereço eletrônico de www.bookcrossing.com. Segui religiosamente as instruções quando cheguei em casa. No virtual local fui informado do nome de todas as pessoas que já tinham lido aquele exemplar do romance de Mark Haddon. Pediram-me ainda que eu informasse que o livro estava são e salvo em minhas mãos. E que, uma vez consumido, para eu fazer a fineza de o passar adiante.

Fui assim apresentado à instituição chamada BookCrossing.

Estou lendo o danado do livro e achando divertidíssimo. Assim que acabar, depois de acrescentar meu nome à lista informatizada, pretendo passá-lo adiante, conforme o trato não assinado.

Acho uma idéia excelente. Meu único problema será onde “esquecer” o romance. No metrô, tenho a certeza que outro passageiro me chamará a atenção para o fato. Isso, com sorte. Quem pode jurar que uma alma mais aflita que as outras não vai botar a boca no mundo e gritar “Bomba! Bomba! Bomba!”, como se fosse um falecido cronista social brasileiro de origem levantina.

Talvez eu o deixe aqui mesmo, na cantina da BBC, quando não tiver ninguém olhando. Ou então no supermercado perto de casa, na seção de biscoitos. Se eu fosse homem de sentar em banco de praça (e se as praças de Londres tivessem mais bancos), lá o abandonaria. No entanto, o tempo incerto da capital seria uma ameaça à integridade física da obra de Mark Haddon: e se de repente caísse uma pancada de água?

Não, não. A “libertação”, chamemo-la assim, terá de contar com literária arte e engenho. De qualquer forma, não aconselho a adoção do esquema no Brasil. Além de deixar furiosos editores e livreiros, possivelmente um policial me daria voz de prisão.

Não por estar passando drogas adiante. Simplesmente por estar munido de livro e tentando sua livre circulação. Não estamos preparados para essas coisas. Livro, digam o que disseram, ainda não é conosco. Só complica a cabeça das pessoas. Juram. Já um celular…

Ivan Lessa

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