14.9.08

Os preconceituosos herdarão o Reino de Deus

Chamamos de preconceituoso aquele a quem xingamos. Um condenado ao inferno da ignorância. A pessoa preconceituosa é a que conduz para o ato do conhecimento uma opinião já formada sobre o assunto. Sua concepção orienta a apreensão de novos conceitos. Dessa forma, agir preconceituosamente é impedir-se o acesso ao conhecimento mais profundo, ou à verdade.

Um pouco mais do mesmo. Um preconceito é como uma impureza no manuseio da verdade. Quem quiser chegar a um conhecimento legítimo precisará purificar-se de qualquer idéia que possa influenciar a compreensão do objeto. O preconceito, pensando assim, distorce o conhecimento pretendido.

É com essa advertência que a epistemologia moderna indica o acesso ao conhecimento bem fundamentado. É com essa perspectiva que o fundamentalismo resolve o nó de sua pretensão de posse absoluta da verdade sobre Deus: o intérprete que há entre o texto bíblico e o que dele se diz. O cientificismo propõe para o bom conhecimento o método, o rito de purificação das idéias, que promete livrar a interpretação de todos os preconceitos. A hermenêutica fundamentalista apresenta uma ciência de interpretação, letrista e imparcial, que pode fornecer a confiança de que sua aplicação redundará em uma “reta doutrina”. Livre-se dos preconceitos e descubra a sã doutrina! Lindo, se não fosse uma tolice.

A lógica moderna chegou ao limite dessa pretensão ao propor uma linguagem artificial, uma linguagem matemática, para articular todo e qualquer conhecimento. Uma linguagem pura, sem as ambigüidades da linguagem historicamente constituída. A compreensão fundamentalista da Bíblia também tem a sua linguagem artificial. É o dogma da inspiração verbal-plenária das Sagradas Escrituras, tudo o que está no texto é absolutamente dito e orientado pelo próprio Deus, portanto, é um texto inerrante e infalível. Se formos capazes de dominar o super-texto, tal como o lógico quer dominar a linguagem científica, nosso discurso será digno de confiança.

Mas tudo seria perfeito se não fosse humano. A inserção do humano é a manifestação do provisório, do incerto, do ambíguo, do contraditório, do histórico, do finito. Entrou gente, chegou o duvidoso. Se há a liberdade humana, também há a imprevisibilidade. Por isso, é impossível a tal relação pura com a verdade. É impensável a compreensão das Escrituras sem os preconceitos.

Uma pessoa não recebe a linguagem como um processador previamente programado recebe um banco de dados. A linguagem é a experiência da pessoa com o seu mundo. Uma experiência histórica, por isso processual e finita. Em um mundo intersubjetivo, por isso ambígua e conflitante. A pessoa nasce e se desenvolve com linguagem. O que fala e compreende ganham sentido à medida que experimenta socialmente o seu mundo e o seu tempo. Uma palavra significa sempre alguma coisa muito rica e prolífera. Ou seja, uma coisa sempre significa um mundo de coisas. Dizer algo remete há muitas experiências e sentidos. É tanto assim que a teoria literária fala do texto como algo que deixa de pertencer ao seu autor quando ofertado aos leitores. E o que significa não é o que o autor poderia originariamente pretender, mas tudo o que incorre na leitura de quem o faz.

Tentar ler qualquer coisa sem preconceitos, sem os sentidos carregados de antemão, é o mesmo que não ler. Ninguém lê sem uma bagagem nas costas. Uma palavra só é lida, ou compreendida, ou dita porque faz parte de uma lógica, de um modo de compreender agregado historicamente. Senão, nada diz. Senão, nada significa. Então, não há leitura não preconceituosa possível. Quando eu leio “amor” só compreendo porque tenho “amor” na bagagem. O “amor” que leio funde-se com o “amor” que carrego e minha bagagem se transforma e aumenta. Isso é compreensão.

É a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer que propõe a imprescindibilidade dos preconceitos para a compreensão. Marco Antonio Casanova, em seu excelente artigo sobre a hermenêutica gadameriana diz: “No momento em que nos aproximamos do texto, já nos vemos orientados por uma série de expectativas de sentido e significação que nunca podemos descartar por completo. Mais ainda: se pudéssemos algum dia suspender essas expectativas, tal suspensão não implicaria senão uma inviabilização imediata e completa do movimento mesmo de leitura.”

Não só não podemos ler sem os preconceitos, como eles também são componentes riquíssimos para uma compreensão atual das Escrituras. São os preconceitos que atualizam e fazem ter sentido o que compreendemos. São eles que conectam as Escrituras com o nosso mundo, nossa vivência e nossas aspirações. São eles que nos fazem herdar hoje as idéias do que já estava escrito.

Sendo assim as palavras também podem ser entendidas como uma herança de sentidos acolhida com a compreensão. Ler é herdar valores. Sentidos até então escondidos nas palavras. Mas desvelados no encontro das palavras que eu carrego e as demais. Leitura é encontro de palavras, as que estão em mim com as que estão no texto. Leitura é o sentido desvelado no encontro das palavras. Leitura é herança de sentidos. É herança e revelação.

“A fé vem pelo ouvir a palavra, mas como crerão se não há quem pregue?”. Porque só as palavras falam às palavras. Porque apenas as palavras ouvem as palavras. Só os preconceitos nos dão ouvidos de verdade. Só os preconceituosos herdarão as palavras. E o Reino de Deus.

Elienai Jr.

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Um comentário:

Anônimo disse...

por isto "eu prefiro ser esta metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formado sobre tudo...",
viva a heterodoxia!!!
(respeitando vossa ortodoxia)

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