EM 1994 , nos EUA, os juros dos empréstimos bancários eram baixos. Em Nova York, os Jones, um casal de professores, decidiram comprar um apartamento que valia US$ 300 mil. Graças a uma herança, eles dispunham de um aporte inicial de US$ 100 mil e conseguiram um empréstimo hipotecário de US$ 200 mil a juros fixos; a mensalidade, que pagariam por 30 anos, era compatível com seus salários.
Em 1996, o apartamento dos Jones, comprado por US$ 300 mil, já estava valendo US$ 450 mil, e os bancos competiam para refinanciá-lo. Os Jones contrataram novo empréstimo hipotecário de US$ 350 mil; com isso, pagaram o saldo da hipoteca anterior (quase US$ 200 mil) e ficaram com US$ 150 mil líquidos, para eles.A bolsa não parava de subir, e os Jones investiram seus 150 mil (sobre os quais pagavam juros de 6%) em fundos de ações (com retorno médio de 16% ao ano). Nada mal.
Dois anos mais tarde, o apartamento valia US$ 600 mil. Os Jones pediram a seu banco uma linha de crédito garantida por uma segunda hipoteca sobre o imóvel: mais US$ 150 mil, que eles investiram nos mesmos fundos de ações.
Nessa altura, além do apartamento (que valia 600 mil, mas com duas hipotecas, de 350 e 150 mil), os Jones possuíam um capital investido de US$ 300 mil. Sucesso, hein?
Preocupados em não perder o trem da alegria, convencidos de que não há bem-estar sem crescimento contínuo e entusiastas da internet, os Jones venderam seus fundos e passaram a negociar ações diretamente numa corretora on-line, com bons resultados: naqueles anos, era difícil errar. Preferiam as ações de empresas das novas tecnologias, que prometiam lucros rápidos. Seus investimentos serviam como garantia para eles alavancarem dinheiro para mais investimentos, o que multiplicava o retorno (e também os riscos, mas os Jones se sentiam confiantes: só conheciam céus azuis -longo período de juros baixos, aumento vertiginoso do preço dos imóveis e subida contínua das bolsas).
Em março de 2000, no desastre das ações de tecnologia, alavancados além da conta, os Jones tiveram que vender na pior baixa. Perderam metade de seu capital. Mas, nesta altura, seu imóvel valia US$ 800 mil; eles ampliaram a linha de crédito e voltaram para a bolsa com toda força.
No 11 de Setembro de 2001, novo desastre. Os Jones ficaram com quase nada. Sobrava-lhes seu imóvel. Problema: entre 2000 e 2001, pela queda nas bolsas, US$ 4 trilhões sumiram das contas dos americanos; o preço dos imóveis estava fadado a baixar. No fim de 2007, o apartamento dos Jones, hipotecado por US$ 500 mil, valia US$ 450 mil. Entregar a casa para o banco credor se tornava um bom negócio. Essa é a história de uma hipoteca de primeira linha. A das hipotecas de segunda linha ("subprime") é mais simples.
Nos anos 90, os Smiths não tinham renda para pagar as mensalidades de um empréstimo. Para que os menos solventes aproveitassem a "festa" imobiliária, os bancos inventaram um tipo de empréstimo com juros bem altos, mas que seriam cobrados só a partir do terceiro ano. Ou seja, antes de dois anos, os Smiths venderiam seu imóvel (cujo valor teria aumentado de, digamos, 30%), reembolsariam o empréstimo do banco e ficariam com o tal 30%, um pequeno patrimônio. Tudo certo -à condição que o preço dos imóveis não parasse de subir.
Durante esse tempo, os bancos, assim como seus clientes, também apostaram no eterno "boom" dos imóveis e transformaram os débitos hipotecários dos Jones e dos Smiths em títulos negociáveis, lastro para alavancar mais dinheiro etc.
O que foi? Cobiça dos Jones e dos Smiths? Ganância de executivos preocupados só com seu bônus de Natal? Uma grande jornalista americana, Barbara Ehrenreich, no "New York Times" de 23 de setembro, aponta para um responsável menos óbvio: o pensamento positivo, triunfante na cultura americana das últimas décadas.
Para Ehrenreich, o problema é que, há anos, "tropas de pastores de superigrejas e um fluxo infinito de best-sellers de auto-ajuda" juram que, para conseguir o que a gente quer, é suficiente "acreditar firme": deseje ardentemente o objeto de sua ambição, e eis que o mundo e Deus responderão a seu pedido.
As estantes das livrarias de aeroporto mandam cada viajante (sobretudo se for um executivo) ser loucamente otimista e confiante. Em seus sites, os conferencistas motivacionais ainda listam orgulhosamente, entre seus clientes importantes, Lehman Brothers e Merril Lynch...
Contardo Calligaris, na Folha de S.Paulo.
colaboração: Judith Almeida e Gedeon Alencar
3.10.08
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6 comentários:
Concordo que a igreja e principalmente seus líderes mega-stars e a pregação antropocêntrica contribuiram para este estado de coisas. Mas peraí, achar que a culpa é da igreja é forçar a barra!
Tão querendo arrumar outro Cristo...ele já veio.
Onde ficam a carne, o mundo e o pecado.
A jornalista "...reich"(III?) está precisando refletir. Não é difícil achar culpados, difícil é achar inocentes.
Contardo,
Achei os 2 exemplos que você deu no seu texto de ontem na FOLHA realmente esclarecedores. Um jeito lúcido de nos ajudar a entender a crise financeira em curso. Obrigada!
Agora, sobre tua citação da Barbara Ehrenreich, de que a tropa de pastores das mega igrejas e a enxurrada dos livros de auto-ajuda têm uma participação na responsabilidade pela crise, fico pensando no famoso slogan do biscoito Tostine: é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?
Ou seja, os pastores da teologia da prosperidade pregam o que pregam, do jeito que pregam - e escrevem boa parte dos livros de auto-ajuda, também - porque encontram mentes ávidas exatamente por aquele tipo de mensagem ou o contrário?
Será que eles teriam a audiência que têm, o "poder" que tem em influenciar tantas pessoas - estudadas, esclarecidas, como o casal que você citou, diga-se! - se não houvesse neles o desejo de fazer justamente a escalada social e financeira que fizeram? Tantos livros seriam escritos se não houvesse leitores sedentos de encontrarem aquela chavinha que os levará a ganhar, ganhar, ganhar?
Minha desconfiança é que aqueles existem por conta destes. Se retroalimentam, é verdade. Mas sem a cobiça, a vontade de vencer, e vencer sem se sentir culpado, sem o desejo de não ser visto como um looser é que faz surgir os pastores televisivos e seus sermões de prosperidade e todos os sub-produtos que se seguem.
Usando uma linguagem do mercado, me parece que a teologia da prosperidade, as mega-igrejas, os livros e os consultores de "sucesso" existem justamente porque preenchem uma lacuna de mercado, porque atendem uma demanda existente para seus discursos.
Meus pensamentos, apenas.
Judith
Sei que o foco aqui não é a questão da crise em si, mas os três últimos paragrafos. Mas para quem quer entender a resposabilidade da crise quanto ao Governo Norte-americano, vale a pena assistir esse video.
http://www.youtube.com/watch?v=H5tZc8oH--o
Vlw a contribuição, Tody!
Big abraço
Hoje o governo dos EUA tem batido na tecla que é preciso a injeção de centenas de bilhões de dólares na economia para manter vivo o sonho americano.
Ainda não se conscientizaram que o sonho americano virou pesadelo e se perdeu no curso da construção de seu império.
O sonho americano era calcado na possibilidade de trabalhar para enriquecer e poder viver em paz, com segurança.
No entanto, o trabalho deu lugar à especulação. O enriquecimento à ganância. A paz e segurança ao desasossego laboral.
Quem pode se esquecer dos yuppies no fim dos anos 1970 e início da década de 1980 ? O sonho de obter 1 milhão de dólares antes dos 30 anos ?
Os EUA foram devorados pela própria cultura que desenvolveram e impuseram como paradigma dos novos tempos. E de quebra, arruinam a economia mundial, expondo a seu orgulho, beligerância e fragilidade.
Agora quero ver se a teologia da prosperidade, tão alinhada aos valores norte-americanos, se sustenta em um mundo em crise.
Eliézer.
Obrigada por postar a coluna do Contardo.
Fiquei curiosa para ver o vídeo indicado pelo Leo Tody, mas não está mais disponível (retirado por solicitação da Warner). Alguém sabe o título/autor?
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