Bom, foi nas andanças em várias quebradas que cruzei a primeira vez com ele. Andava sempre arrumado, camisa com botões, sempre aberta, um boné estilo Baiseball e uma corrente banhada com um pingente de Jesus.
A identificação foi imediata, curtia rap mas tinha vontade de aprender com a literatura, convidei para ir em casa, e me surpreendi quando no outro dia ele tava lá.
O apelido Nego Dú, era um resumo do seu nome Eduardo, conversamos por algumas horas, e ele ficou de voltar, na época revirou todos meus livros para pegar um emprestado.
Depois disso foi constante sua presença, chegava já falando em comida, minha mãe fazia o prato e quando eu não tava, era a mesma coisa, não sei explicar, mas minha mãe adorava ele.
Nego Dú era presença confirmada em todos os meus lançamentos, sempre tava com livros nas mãos, fazia parte de um grupo de rap chamado Realismo Frontal que mais tarde adotaria o nome de Negredo.
Com o Nego Dú eu gravei um especial pra a Record na laje de uma casa, que era um ponto de venda de drogas, casa essa mais tarde que de tanto agente encher o saco os caras largaram.
Foi aí que o Brown e o Negredo se apropriaram da casa e começara a pensar em fazer uma rádio.
O tempo foi passando, as coisas mudando, e o projeto da rádio não saia, foi quando eu dei a idéia de fazer uma biblioteca no lugar, convenci um a um, e o mais difícil foi o Brown, mas ele e o pessoal acabaram aceitando.
Juntamos alguns trocados e sempre compramos os materiais, o Brown chegava sempre com vontade de comprar caixas de som, de comprar discos, e eu pensando nos livros, e assim se passaram cinco anos, até que a casa estivesse pronta.
Pra manter a ordem das nossas idéias, separamos dois ambientes, um pra livro e outro pra som, o Dj Ale junto com o Dj Odair sempre tava lá montando as pickup’s e fazendo um som, e eu pensava: - como isso vai ser uma biblioteca com um barulho desses?
O Brown contratou um marceneiro que fez as estantes, e eu organizei os livros, entre um trampo e outro, muita conversa, quem ganhava era todos nós com tanto ponto de vista diferente. Graças ao Arnaldo estava tudo pintado e só faltava bolar a inauguração, quando a laje começou a vazar, cada chuva vazava mais, até que ficou lastimável a situação.
O que seria o certo? Derrubar tudo e fazer de novo, e ainda tinha outro problema, um mano tava requisitando que era dono da laje da casa, e queria mudar pra lá de todo jeito, mas no debate ele perdeu, afinal nós somos fortes na comunidade, e estávamos lutando não por algo pessoal, mas por algo que envolve toda comunidade, mesmo assim, com o consenso de que ele precisava de uma casa, alguns manos juntaram uma grana e compraram um barraco pra ele.
Enquanto tudo isso acontecia para que a biblioteca ficasse pronta, num dia fatídico saiu um tiroteio na rua, e dois caras discutindo chegaram a trocar tiro e acertaram uma criança de 4 anos, e vocês não tem idéia do que ter um peso desses na mente, afinal se a biblioteca tivesse funcionando talvez esse pequeno estaria vivo.
E começamos a reconstrução da biblioteca, chegaram com agente a Sophia Bisiliat e a sua mãe Maureen que trouxeram várias idéias entre elas a de se fazer um Dvd, com a festa que o Negredo organizava todo ano na mesma rua da biblioteca, e a renda desse dvd seria para terminar a obra.
Começamos a projetar o Dvd, juntamos várias artistas de hip-hop e no meio do caminha também nos decepcionamos com vários manos que de projeto social tem nojo até do nome, mas nem tudo é ruim, outros manos somaram mil graus, como o Gog, o Realidade Cruel, Záfrica, Detentos do Rap, RDG, Muralha sul, Colt 44, Rosana Bronx, Consciência humana, Otraversão, e Detentos do Rap. E a festa aconteceu com a presença de 8.000 pessoas.
O Dvd foi realizado, chama-se 100% favela, além do show tem um documentário comigo, o Brown e o Negredo, além dos caras no estúdio. O Dvd Foi um sucesso pela qualidade e pelo trabalho de juntar tanta gente boa do rap, os que não quiseram se envolver hoje ficam se lamentando.
A renda do Dvd é destinada ao projeto, mas uma má fé na distribuição acabou nos deixando na mão, e pouca coisa sobrando para a biblioteca, enquanto isso o tempo ia passando.
Só com os recursos nossos tava difícil terminar, e chegou uma parceria que aos poucos foi somando que é o Marcelo Loureiro da Hucka.
Ele começou a trazer um engenheiro, que redesenhou o projeto, e começou a nova obra. Um corre danado e o Arnaldo (Negredo) tava de linha de frente na reconstrução de tudo.
Um dia chego lá todo animado e o Arnaldo ta com uma marreta de 3 quilos derrubando as paredes, quando vi tudo destruído quase chorei, mas depois de alguns meses vi que tava valendo a pena recomeçar.
Pelo terreno ser úmido e a casa mal desenhada, era necessário refazer, e até intervir em casas próximas já que a favela é muito desorganizada.
Bom, finalmente terminou a obra, enquanto estava construindo recebemos escritores importantes entre eles, Paulo Lins (Cidade de Deus), Buzo (O trem), Arnaldo Antunes, Lourenço Mutarelli.
Levar tanto tempo valeu a pena, porque vimos um ponto de droga virar um ponto de cultura, e naturalmente quem usava drogas nas vielas foram saindo e deram espaço para um novo público o da leitura.
Hoje depois da inauguração, da pra ver que valeu muito a pena, o segundo andar da biblioteca chama Nego Dú e vive lotado de criança, chamando agente de tio pra cá de tio pra lá.
A gente ta tendo que aprender a lidar com elas, pois não esperávamos esse público, pensamos em jovens e adultos. E foi uma surpresa como tem sido todos os dias, cada coisa que elas falam, a cada ato que fazem, quem aprende muito mais somos nós.
O Gel que é um grafiteiro daqui, juntou mais 20 nomes do grafite e pintou todas as vielas próximas a biblioteca, e não é difícil você trombar com palavras como Sabedoria, e Conhecimento entre um beco e outro.
É pouco, sei disso, comparado com as mil bibliotecas que o governo prometeu no começo do mandado, mas essa única biblioteca na favela é de todos nós e ao contrário das mil do governo, essa é real.
Ferréz
Esse texto é dedicado ao Nego Dú, mano tão raro, que nunca mais vi nenhum andar tanto para pegar comigo um livro do Fernando Pessoa. Hoje meu amigo os livros estão na sua comunidade.
Como algumas pessoas estão perguntando, o DVD 100% favela está a avenda tanto na loja da 1dasul Capão, como em Santo Amaro na galeria borba gato, também na loja do Negredo e na galeria 24 de maio em qualquer loja de Hip-Hop, e só pra constar estamos terminando de editar o número 2 com vários grupos de quebrada.
Caraca... o relato cortante do Ferréz me fez chorar... Enquanto isso, o horário político eleitoral continua no mundo da fantasia, assim como muitas igrejas.
18.10.08
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Um comentário:
É isso ai Pavarine. Tô contigo. Quando é que nós que nos dizemos cristãos, vamos colocar em prática o que nos ensinou o carpinteiro de Nazaré e ser sal da terra e luz do mundo?
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