Impossível não me tomar de assalto a mente e o coração o refrão da belíssima canção que a voz impecável de Elis Regina cantava “a capela” nos anos 70: Black is beautiful. Impossível. Pois ver Barack Obama vitorioso, dirigindo-se ao enorme palco, diante de uma cidade atapetada de americanos emocionados dizendo ao microfone: Alô, Chicago! era belo demais de se ver e ouvir.
Duvidei sim. Duvidei que as pretensões democráticas dos americanos fossem sérias. Duvidei que o americano comum de classe media, na hora H de votar, fosse optar pelo negro Obama, ainda que alto, bonito, elegante e carismático. Achava que na última hora o veterano McCain, que não tem nenhum patrimônio a exibir além das quatro guerras que guerreou, levaria a eleição. Temi que prevalecesse o medo do novo, o medo da perda do estilo de vida feito de conforto e excessos, o passado ainda marcado pelas cicatrizes da discriminação que dividia o ônibus entre negros e brancos, que assassinava rapazes negros como Emmet Louis Till porque havia ousado assoviar para uma mulher branca; e que trazia sobre si a sombra sinistra da Ku-Klux-Klan.
Afinal, estão tão perto ainda na história – algumas décadas somente – o caso de Rosa Parks que, cansada de conceder, não cedeu o lugar a um branco no transporte público; a cruzada heróica de Martin Luther King, que terminou tragicamente com seu assassinato em Memphis, Tenessee. Tão vivos na memória da nossa geração e nos livros de história contemporânea de nossos filhos.
Os últimos anos, com a avalanche migratória que teima em adentrar as fronteiras estadunidenses, apesar da rígida vigilância, da implacável política do governo Bush e que está colorindo a pele da antes branca América eram mais um elemento intranqüilizador. Com o pavor da perda de controle sobre sua orgulhosa identidade de povo e nação, como iriam os Estados Unidos votar em um negro nascido no Havaí, com nome africano e passado tribal e muçulmano?
E, no entanto, hoje o mundo se volta surpreso para o presidente negro que diz: Alô Chicago! enquanto espera a posse do mandato e o ingresso na Casa Branca, onde até bem pouco tempo os negros só entravam pela porta dos fundos, realizando serviços subalternos. Um afro-americano é o chefe da nação mais poderosa do Ocidente e o mundo todo respira com esperança. A força do símbolo alarga os pulmões e dilata os espaços interiores. É possível acreditar que o novo abre caminho onde o mesmo e o continuísmo pareciam instalados para sempre. É possível acreditar na liberdade do ser humano que escolhe, que opta, que decide e consegue manter-se imune às coações de qualquer tipo.
Talvez Obama não seja tão inovador ou pioneiro ou audaz quanto se espera ou quanto seria de se desejar. Talvez seu governo não trace tão nitidamente prioridades que muitos esperamos. Talvez fique ainda longe e distante de construir a justiça e a igualdade entre o Norte e o Sul como metade do mundo assim o deseja. No entanto, a força do símbolo permanece. Um negro foi eleito por larga margem de votos para a presidência dos Estados Unidos. E isso é razão para comemorar e muito. Sem pudor e sem vergonha. É motivo, sem dúvida, para se acreditar na humanidade.
O novo presidente americano é negro, é democrata, é carismático. Ganha a presidência em um país de mentalidade e cultura branca, onde o partido republicano há oito anos permanecia impávido no poder, onde o único discurso a funcionar a contento era o da lei e do dinheiro. Ele representa as aspirações de muitos e muitas, acima e abaixo do Equador. Ao fundo da figura e do discurso de Obama soam os tambores do Quênia, de onde vêm seus ancestrais. Seu nome – que quer dizer abençoado em “suaili”, dialeto do Quênia – povoa os lábios brancos, saxões, latinos, hispanos, asiáticos, afrodescendentes e indígenas que compõem o perfil da América. E sua silhueta recortada contra o céu de outono de Chicago desencadeia de novo a canção de Marcos e Paulo Sérgio Valle pela garganta de ouro de Elis Regina: Black is beautiful!
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
11.11.08
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