15.11.08

Esperando Meu Godot

Influência nem sempre é algo sobre a qual um autor tem muito controle. Você não decide: “Eu vou escrever como Hemingway”. Quer dizer, a não ser que você seja medíocre.
Influência é algo que se absorve, quase passivamente, quase por osmose. Como cianeto. Parte mais estranha, às vezes você nem é influenciado por autores que você gosta. Acho que todo mundo consegue ver que minha obra é fortemente influenciada por Kafka; está lá em “O Tigre Fortuito”, a série dos “101 Infernos”, até “Macacos”. Bom, adivinha só: eu não gostava de Kafka. Eu odiei “O Processo”, e achava “Amérika” uma das maiores perdas de tempo a que já havia me submetido. Mas, aos poucos e até imperceptivelmente, Kafka tomou conta de mim. Hoje eu posso dizer que nenhuma literatura pesa mais nas minhas palavras que a do gênio perdido de Praga… exceto talvez a de Samuel Beckett.

***

Vocês devem esse blog a Samuel Beckett. Foi ele que me fez desistir dos romances e da literatura quadrada na qual eu estava metido. Foi Beckett que me fez ver a desintegração da linguagem, sua futilidade e fraqueza. Beckett foi um bálsamo para as minhas ilusões literárias que me tirou do triste caminho de ser outra inútil voz no vazio, punhetando modernistas mortos… Chega de escrever as mesmas velhas histórias e repetir as lições, como um garoto sendo punido a reeescrever vez por vez o mesmo texto em um quadro-negro. Sob a influência de Beckett, permiti que minha literatura se fragmentasse, abandonei a pretensão de objetividade e parti para outras coisas. A decisão de fazer cinema, também veio daí. Imagens contam, uma vez que as palavras não são mais sagradas.

***

“Esperando Godot” é minha peça predileta. Até mais do que qualquer uma de Shakespeare. Embora, convenhamos, “Hamlet” já prenunciava “Godot”, “Hamlet” já era uma peça onde nada acontecia por vários atos.

***

E qual a graça de “Godot”? É que a peça é uma ferramenta de auto-conhecimento. Quem é Godot? O que é Godot? A resposta, definitivamente, diz mais sobre quem o espera do que sobre ele. Eu lia “Esperando Godot” e saquei: “Godot é a esperança!” Mas daí pensei… “Não. Godot é a esperança porque eu vivo de esperanças. Para as outras pessoas, Godot é outra coisa…” Para cristãos, Godot é deus. Para comunistas, Godot é a revolução. Para capitalistas, Godot é um grande empresário, para os nihilistas, Godot é uma ilusão. A genialidade de Beckett está aí: a imagem especular de “Esperando Godot” não se manifesta apenas no fato de que um ato repete o outro. Ela se manifesta no fato de que a peça reflete o próprio espectador. Como Didi e Gogó, você também está esperando Godot, matando o tempo e tentando se entreter com algumas vãs palhaçadas. E, assim como Didi e Gogó, você também investe e atribui a Godot características que explicam o que VOCÊ aguarda… O que você passou a vida esperando, ou o que você acredita, ainda que não confesse sequer para si próprio, que vale a pena esperar.
Cada um tem seu Godot. Sua salvação mágica, seu deus ex machina. Talvez ele venha amanhã, talvez não. Não importa. Nada acontece, enquanto você apenas esperar.

Felipe de Amorim, em O pensador selvagem.

E o post não seria completo sem um dos trechos mais lindos (se não o mais) da obra, que reproduzo aqui:

"Eu estava dormindo enquanto os outros sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã, quando eu estiver pensando que acordei, que direi do dia de hoje? Que junto com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite, eu esperei por Godot? Que Pozzo passou com seu escravo e falou conosco? Sem dúvida. Mas o que haverá de verdade em tudo isso? Ele não saberá de nada. Ele falará dos golpes que recebeu e eu lhe darei uma cenoura. Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo da terra, o coveiro ajuda, lento, com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto dos nossos gritos. Mas o hábito é uma grande surdina. Também para mim alguém está olhando. Também sobre mim alguém estará dizendo: "Ele está dormindo. Ele não sabe nada. Deixe-o dormir. Não posso mais continuar. O que eu estava dizendo?"

Nenhum comentário:

Blog Widget by LinkWithin