7.12.08

Em off

Qualquer canção de amor
É uma canção de amor
Não faz brotar amor e amantes
Porém, se esta canção
Nos toca o coração
O amor brota melhor e antes

Chico Buarque *


Muito gostei de ouvir a música gospel dos corais e cantores negro-norte-americanos. Na minha estante, alguns nomes contam essa história. Lá, empoeirados, estão Fred Hammond, Yolanda Adams, Kirk Franklin, Bebe e Cece Winams, Mount Moriah Mass Choir, The Brooklyn Tabernacle Choir, entre outros. Nessa época, para mim, cantar bem tinha a ver com a gritaria, com o estardalhaço, com o virtuosismo, com a pedância em repetir um mesmo estribilho. Bons foram aqueles tempos, mas já passaram.

Em seguida tive a fase, digamos, mais branquela. Cristal Lewis e Sandi Patti eram ícones. Outra vez a gritaria reinava, essencialmente com a Patti cantando a enlouquecida Via dolorosa. Era coisa de cortar os pulsos, o que sempre me deu medo. Por sorte não havia armas em casa.

Na seqüência, descobri o worship. Outra febre. Comecei ouvindo o sóbrio Joseph L. Carlington; passei pelo Don Moen e seu Celebrate, não esqueci o Kenoly nem a versão tupiniquim representada pelo Adhemar de Campos. Nessa mesma época, tudo o que se fazia na América e se traduzia por aqui era como se tivesse caído direto do céu.

Depois foi o rock cristão. A sina da cópia foi a mesma já relatada. A linguagem da América era como se fosse a língua dos anjos.

Minha incursão pela literatura cristã percorreu o mesmo caminho. Caminho estúpido. Lembro-me do medo causado por um livro no qual se chamava Mikail Gorbachev de anticristo. Li Steven Lawson, Benny Hinn; Rebecca Brown, entre outras tristes pérolas. Dentre as minhas atuais decepções está o Max Lucado.

Minha vida mudou completamente. Hoje, aos trinta e quatro anos, sou completamente diferente dos que só me conheceram nos anos oitenta ou noventa.

Qualquer canção de bem

algum mistério tem

É o grão, é o germe, é o gen da chama

E essa canção também

Corrói, como convém,

O coração de quem não ama.

Chico Buarque

De repente eu, que fui tão protegido do mundo, descubro o mundo. Que mundo maravilhoso. Descobri que havia MAIS perto de mim do que a minha vã filosofia, do que a minha pouca visão de mundo. Na medida em que começava a incomodar o norte-americanismo, começava a conhecer o Brasil. Conheci o Grupo Logos, o Milad, o Sinal de Alerta, o Rebanhão (que alguns idiotas insistiam na mensagem subliminar). O Sergio Pimenta, o João Alexandre, o Jorge Camargo. Opa, isso tudo feito por crentes? Estarrecedoramente a resposta era sim. Na escrita, descobri o Paulo Romeiro, o Ricardo Gondim, entre outros ousados.

Adiante na minha criticidade, comecei a desconfiar dos que falavam mal do Renato Russo (não só por sua opção sexual) e do Raul Seixas. Fui ouví-los. Que bênção! Que descoberta ótima.

Passei a desconfiar dos discursos igrejeiros que ouvia.

Casei. Fui para a faculdade. Tornei-me professor. Adquiri casa própria. Aumentei consideravelmente meu leque de leituras e audições musicais. Descobri autores não cristãos: Kafka, Saramago, Dostoiévski, Graciliano, Cony, Lispector, Machado, Cecília, Adélia. Conheci outros tons: Zé Keti, Lupicínio (meu conterrâneo), Elis, Chico (nem precisava dizer), Teresa Cristina; Madonna, M. Jackson, George Michael, Lauryn Hill, Nirvana – entre muitos e muitos outros. Encontrei-me com os escritores do mal e com a música mais underground. Começava a entender por que as instituições religiosas odiavam alguns desses que acabei de citar. Percebi que as amizades – dentro ou fora da instituição – continuavam intocadas. Notei que Deus não me abandonara. Observei que “a língua dos anjos” estava mais para inglês do que espanhol ou português e que, apesar disso, Deus estava firme e imutável em se revelar pra mim via Borges, Márquez, Neruda.

Lendo ou ouvindo os nomes recém citados era-me (e ainda é) perceptível uma nuance do divino, de estética.

Passei a desconfiar ainda mais dos discursos igrejeiros que ouço. O que fazer? Tomar decisões.

Porém ainda é melhor
Sofrer em dó menor
Do que você sofrer calado.

Chico Buarque

Na idade em que estou acho que posso usufruir de alguns luxos. E assumo-os com possíveis riscos que daí advenham – inclusive o de 'torrar' no inferno.

Já passou, já passou
Se isso lhe dá prazer
Me machuquei, sim, supurou
Mas afaguei meu peito
E aliviou
Já falei, já passou

Chico Buarque

Pelo menos por hora, desisti de ficar 'perdendo tempo' discutindo doutrina, visão de igreja, de denominação ou, pior, minha cosmovisão cristã. A razão é que, em geral, quem se envereda nesse caminho quer me convencer de que estou errado, de que tenho de mudar. Portanto, o que penso sobre cristianismo penso e pronto; meu pensamento é o “de experiência feito” - no dizer do mestre educador Paulo Freire**. Continuando com ele, preciso imediatamente dizer que cheguei num ponto da vida em que “a minha fé não me faz cínico, ela me faz indignado”. Mas não uma indignação acrítica.

Desisti de ter pressa. Agora moro numa cidade mais tranqüila, ando mais a pé. Se perco um ônibus espero o próximo ouvindo música ou lendo um livro. A correria só aumenta meus batimentos cardíacos. Pobre, levei treze anos para adquirir a casa própria; só agora serei pai. Cansei de esperar ansiosamente a volta de Cristo. Quero que Ele venha, mas sem pressa. Enquanto isso, fico por aqui, às vezes brincando, às vezes tentando crescer, às vezes tentando melhorar o mundo. Desisti de salvá-lo.

Desisti de ouvir rádio e olhar programas de televisão cristãos. Na verdade, tenho fugido de tudo que tenha a palavra gospel ou cristã. Não quero enriquecer nenhum líder de qualquer coisa em nome da obra de Deus. Tampouco ficar ouvindo receitas de como receber mais de Deus, como ser desesperado por Ele, apaixonado por Ele. Estou de saco cheio de tirar o pé do chão sem cair. Chega dessa palhaçada. Prefiro ler os chatos Lair Ribeiro e Roberto Shinyashiki a ouvir um sermão baseado muito mais neles do que na sempre ótima Bíblia. Lair e Roberto pelo menos sabem fazer o que fazem. Os 'preletores' são como vacas, ficam ruminando para, depois, regurgitar na boca de uma massa preguiçosa.

Desisti de entrar em livrarias evangélicas. Prefiro a Livraria Cultura, a Saraiva. Não é pelo marketing mas, sim, pela possibilidade de comprar uma obra melhor. Entre ouvir o Michael Smith e o Toque no Altar cantando a chata “Faz chover” prefiro as múltiplas versões da linda “Ave Maria no morro”. Tem muito mais a ver com a minha vida, com o meu cheiro, com a terra na qual Deus me permitiu nascer. Ocorre que a Ave Maria no morro não foi feita no norte, mas no sul. Então parece – para alguns – mais feia, menos divina. Pra mim não.

Desisti, por essas e outras, de 'bater o ponto' num templo. Tenho optado por compartilhar da vida com os poucos amigos. Tomar um belo café com minha mulher (de quem não sou dono) e futura mamãe. Dar um passeio pela rua ouvindo o canto dos pássaros. Ouvir um Zeca Baleiro, um Baden Powell, um gaudério como Vitor Ramil ou os conterrâneos César Oliveira e Rogério Melo. Tem sido maravilhoso descobrir As cidades invisíveis, do outro Calvino. Tenho refletido quando canto o Hino Rio-Grandense. E tem sido muito desafiador demonstrar Cristo tanto para os meus alunos da EJA como para os meus vizinhos. Ser sal num lugar onde a igreja tem sido açucar não é fácil. Desvencilhei-me. Basta de instituição.

Desisti de ter medo de Deus. Não é isso que Ele quer de mim. Ele quer que eu seja eu.

Já não tenho medo do inferno (o que é esse mundo muitas vezes?). Também não fico ruborizado quando me dizem que “Deus vai cobrar”. Muito menos sigo os conselhos dos legalistas de plantão, aqueles que se acham maduros demais na fé ou que já alcançaram um certo patamar de santificação espiritual que estão de “corpo fechado”. Ignoro os tapadores de furos, aqueles que se acham a espuma das brechas (abriu a brecha?).

Deixem-me viver em paz e escrever o que bem quiser.

Ah, estou bem. Amo a mulher que tenho e a criança que estará conosco lá pelo final de abril/2009. E porque sou humano sou imperfeito, tenho relacionamentos a melhorar; sou cheio de defeitos. Sou chato, tenho um jeito ranzinza.

Mas tenho uma certeza que me conforta: não há nada que eu possa fazer para que Deus me ame mais, ou menos. Essa é a razão de eu estar vivo. Ele me ama!!!

Recolha o seu sorriso
Meu amor, sua flor
Nem gaste o seu perfume
Por favor
Que esse filme
Já passou

Chico Buarque

* As citações do Chico Buarque são das maravilhosas músicas “Qualquer canção” e “Já passou”.

** FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria Araújo Freire (org). São Paulo: Editora UNESP, 2001.

Levi Nauter, no blog Anotações sobre um cristianismo

6 comentários:

Timilique! disse...

Fiquei emocionada ao ler esse texto do Levi.
Obrigada pela postagem.
Abraços

Cícero Alvernaz disse...

Que salada, meu amigo! Deste jeito você vai morrer de indigestão. Misturar o sagrado com o profano pode ser uma tentativa até louvável, mas, corre-se o risco de não usufruir nem de um nem do outro. Afora o fato de ser uma busca no mínimo contraditória.

Anônimo disse...

Sobre o post acima:
Usufruir do sagrado..rs..essa é boa! Faz bem o tipo do evangelho de consumo; do evangelho que se usa; do evangelho que me serve. Pelo que já vi, poucos tem a coragem de dizer.: "Desisti de ter medo de Deus. Não é isso que Ele quer de mim. Ele quer que eu seja eu"...tristemente, o risco que o rapaz do post acima se refere é de não "usufruir do sagrado" enquanto deixa de ser "ele" mesmo, em troca de um embuste.
Fazia tempo que não lia um texto tão lúcido e criativo...
Parabéns ao autor!

Cícero Alvernaz disse...

Sobre o post acima: Esclareço ao leitor-comentarista que "usufruir" como foi colocado por mim, é no sentido bíblico e espiritual e não no sentido material ou financeiro. "Quem lê, entenda".

RiMiLi disse...

É isso aí...
Vamos desistir da igreja e abraçar o mundo!

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Opus Dei cara!!!!

Blog Widget by LinkWithin