Eloqüente Xerazade, de sua boca escorria o mel, na noite brilhava sua inteligência, resplendia sua beleza. Sua pele, o tocar de sua voz se tornavam meus bens mais preciosos, que eu só possuía porque eram um dom que ela me fazia. Nós nos tornávamos íntimos, dormir perto dela me dava cada vez mais prazer, um sonhando ao lado do outro.
Por meio dela eu recuperava a paciência, reconstituía minha capacidade de diferenciar; ganhava novamente confiança na promessa. A partir da centésima quadragésima nona noite, eu não desejava as histórias apenas para ser protegido da insônia; era para escutar a minha contadora que eu retardava o momento de dormir.
Ao longo das histórias, eu podia finalmente falar sobre o que tinha me acontecido. No começo com cólera, aquela que eu não tivera no momento, depois com certo distanciamento e, finalmente, como uma coisa que me acontecera em um passado que não tinha mais atualidade.
A voz de Xerazade trabalhava para produzir em mim o esquecimento ao me permitir dar um nome àquilo que foi e que fez com que minha razão fosse embora. Por meio dela, à noite, meu passado, de pesadelo, se transformou em sonho.
Quando ela veio a mim pela primeira vez, em meu reino, os humanos estavam nos gritos de dor e no tumulto do terror, os pais e mães fugiam das cidades do meu reino com as filhas que lhes restavam. Com ela, a bênção foi dada ao meu país e meus súditos foram felizes como ela.
Mil noites foram necessárias para que meu olhar se desviasse da cena em que estava aprisionado. Se, sem que eu soubesse, de minha boca saíram, desde a 270a. noite, elogios indiretos, novecentas e trinta e sete noites foram necessárias para que minha consciência reconhecesse o amor que se apoderou de minha alma, e para que finalmente eu aceitasse ver Xerazade em todo o seu esplendor e para que eu soubesse que, dali em diante, não conseguiria passar um dia de minha vida sem que sua voz chegasse aos meus ouvidos.
Por meio dela retornou ao meu espírito o entendimento perdido. As palavras reencontraram todo o seu sabor. E nelas foi-me possível ouvir o nome ausente de Alá, o centésimo, e, para que isso fosse possível, a voz teve que ser ouvida mil noites pelo sem-fé que eu me tornara.
Minha vida chega a seu termo; à minha vida Xerazade não faltou nenhum dia. Amanhã a deixarei só. O tempo não consumiu meu amor, nos nossos corpos ele cravou as marcas dos encontros, os traços da vida. Certamente, a figura de Xerazade se cobriu de rugas, mas sem desfigurá-la, tornando mais precioso e puro o rosto do meu amor. Em sua pele, as cavidades feitas pelo hóspede que fui durante tantos dias e noites naquela que, durante tantos anos, foi minha hospedeira.
Da boca de minha companheira - esta mulher de longas coxas de gazela, de olhos de pomba e cabelos de gaio - escorreu o mel entre seus lábios, que são "como um fio escarlate". Por sua voz foram salvas de minha loucura assassina as filhas das Musleminas. Deste modo, ao povo proveniente de Abraão e de Agar foi assegurada uma descendência que poderá fazer com que Aquele que permanece intangível em sua eternidade possa ouvir elogios e glória até o fim dos tempos. A Ele recorremos para um afortunado e feliz fim.
Por meio dela eu recuperava a paciência, reconstituía minha capacidade de diferenciar; ganhava novamente confiança na promessa. A partir da centésima quadragésima nona noite, eu não desejava as histórias apenas para ser protegido da insônia; era para escutar a minha contadora que eu retardava o momento de dormir.
Ao longo das histórias, eu podia finalmente falar sobre o que tinha me acontecido. No começo com cólera, aquela que eu não tivera no momento, depois com certo distanciamento e, finalmente, como uma coisa que me acontecera em um passado que não tinha mais atualidade.
A voz de Xerazade trabalhava para produzir em mim o esquecimento ao me permitir dar um nome àquilo que foi e que fez com que minha razão fosse embora. Por meio dela, à noite, meu passado, de pesadelo, se transformou em sonho.
Quando ela veio a mim pela primeira vez, em meu reino, os humanos estavam nos gritos de dor e no tumulto do terror, os pais e mães fugiam das cidades do meu reino com as filhas que lhes restavam. Com ela, a bênção foi dada ao meu país e meus súditos foram felizes como ela.
Mil noites foram necessárias para que meu olhar se desviasse da cena em que estava aprisionado. Se, sem que eu soubesse, de minha boca saíram, desde a 270a. noite, elogios indiretos, novecentas e trinta e sete noites foram necessárias para que minha consciência reconhecesse o amor que se apoderou de minha alma, e para que finalmente eu aceitasse ver Xerazade em todo o seu esplendor e para que eu soubesse que, dali em diante, não conseguiria passar um dia de minha vida sem que sua voz chegasse aos meus ouvidos.
Por meio dela retornou ao meu espírito o entendimento perdido. As palavras reencontraram todo o seu sabor. E nelas foi-me possível ouvir o nome ausente de Alá, o centésimo, e, para que isso fosse possível, a voz teve que ser ouvida mil noites pelo sem-fé que eu me tornara.
Minha vida chega a seu termo; à minha vida Xerazade não faltou nenhum dia. Amanhã a deixarei só. O tempo não consumiu meu amor, nos nossos corpos ele cravou as marcas dos encontros, os traços da vida. Certamente, a figura de Xerazade se cobriu de rugas, mas sem desfigurá-la, tornando mais precioso e puro o rosto do meu amor. Em sua pele, as cavidades feitas pelo hóspede que fui durante tantos dias e noites naquela que, durante tantos anos, foi minha hospedeira.
Da boca de minha companheira - esta mulher de longas coxas de gazela, de olhos de pomba e cabelos de gaio - escorreu o mel entre seus lábios, que são "como um fio escarlate". Por sua voz foram salvas de minha loucura assassina as filhas das Musleminas. Deste modo, ao povo proveniente de Abraão e de Agar foi assegurada uma descendência que poderá fazer com que Aquele que permanece intangível em sua eternidade possa ouvir elogios e glória até o fim dos tempos. A Ele recorremos para um afortunado e feliz fim.
Trecho de Mil noites e uma noite presente no excelente Biblioterapia, de Marc-Alain Ouaknin.
A obra expõe, por um lado, o aspecto histórico desta prática terapêutica, a qual remonta às próprias origens da escrita, e, por outro lado, explicita seus fundamentos, seus métodos, suas matrizes interpretativas através de diferentes obras advindas de diversas tradições, percorrendo um caminho que vai deste o Pentateuco até a filosofia existencial do século XX. É leitura agradável, instigante e terapêutica. ;)
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