27.12.08

A pasteurização da esquerda (1)

Na virada do século XX ao XXI, a América do Sul assistiu ao agravamento da questão social em decorrência das políticas neoliberais adotadas nas décadas precedentes. Isso fortaleceu os movimentos sociais e os partidos políticos que representavam alternativas de mudanças. É o que explica a eleição a presidente da República de Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Morales na Bolívia, Correa no Equador e Lugo no Paraguai.

Se, de um lado, a esquerda sul-americana logra ser uma alternativa de governo, por que não o consegue ao se tratar de uma alternativa de poder?

Desde a queda do Muro de Berlim (1989) a esquerda, em todo o mundo, entrou em crise de identidade. A implosão da União Soviética e a adesão da China à economia capitalista de mercado deixaram-na órfã, sem respaldo necessário para empreender mudanças pela via revolucionária.
Na América do Sul, optou-se, pois, pelo fortalecimento dos movimentos sociais representados por partidos políticos cujas raízes se inseriam nas comunidades cristãs de base, fomentadas pela Teologia da Libertação; no sindicalismo combativo; nas organizações populares de indígenas, camponeses, negros, migrantes, mulheres, e excluídos em geral. No caso venezuelano, a contestação se transformou em força política até mesmo nas Forças Armadas.

Não restava alternativa a esse movimento social engajado na busca de um “outro mundo possível” senão disputar, com os partidos do establishment, o espaço do poder. Embora desprovidas de recursos financeiros e apoio internacional, as forças políticas de oposição – a esquerda – detinham suficiente poder de mobilização popular adquirido, nas décadas anteriores, pelo “trabalho de formiga” para organizar setores populares situados entre a pobreza e a miséria, como, no Brasil, o fizeram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que tinham, no PT, no PCdoB e, de certo modo, no PDT, as suas expressões políticas.

Esse processo tem sido responsável por mudar o caráter político de governos da América do Sul.
O que se vê, agora, é um impasse, do qual o caso brasileiro é exemplo. Não há como gerar uma ruptura revolucionária, como ocorreu em Cuba em 1959. Como, então, promover reformas de estruturas e reduzir a brutal desigualdade entre a população? Avanços nesse sentido acontecem, hoje, em países que se apóiam numa nova ordem constitucional, como é o caso da Venezuela, da Bolívia e do Equador.

No Brasil, o governo Lula optou por uma governabilidade baseada na política de conciliação com os setores dominantes e compensação aos dominados, dentro do receituário econômico neoliberal. Ao assumir a presidência, Lula poderia ter assegurado sua sustentabilidade política em duas pernas: o Congresso Nacional e os movimentos sociais. Escolheu o primeiro parceiro e descartou o segundo, que lhe era co-natural. Assim, tornou-se refém de forças políticas tradicionais, oligárquicas, que ora integram o grande arco de alianças (14 partidos) de apoio ao governo. (continua)

Frei Betto, no Le Monde Diplomatique.

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