Mea maxima culpa: de tanto constatar que a Folha de S.Paulo não segue as boas práticas jornalísticas nem respeita meu direito de resposta, acabei preguiçosamente deixando passar em branco mais um editorial escabroso desse jornal em processo de direitização, que acerta cada vez mais marteladas na ferradura e menos no cravo.
No último dia 17, em resposta ao que avaliou como sendo uma "vitória eleitoral do caudilho venezuelano" , a Folha lançou o editorial Limites a Chávez, no qual, lá pelas tantas, colocou no mesmo saco Hugo Chávez, Alberto Fujimori e os ditadores militares sul-americanos das décadas de 1960 e 1970, da forma mais descabida e estapafúrdia:
"...Chávez, agora vitorioso, não está disposto a reapresentar a consulta popular. Agiria desse modo apenas em caso de nova derrota. Tamanha margem de arbítrio para manipular as regras do jogo é típica de regimes autoritários compelidos a satisfazer o público doméstico, e o externo, com certo nível de competição eleitoral.
"Mas, se as chamadas 'ditabrandas' - caso do Brasil entre 1964 e 1985 - partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça -, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente".
Foi imperdoável eu não ter rebatido prontamente essa nova falácia da Folha, na esteira da retórica oportunista de personagens direta ou indiretamente responsáveis pelas atrocidades perpetradas no período 1964/85, que há muito tentam descaracterizar aquele que foi o pior período totalitário já atravessado pelo Brasil.
A adoção da tortura como prática generalizada nos inquéritos abertos contra os ditos subversivos, vitimando dezenas de milhares de brasileiros; o sem-número de casos de estupros e atentados violentos ao pudor cometidos durante essas torturas; o assassinato de resistentes não só por acidentes de trabalho (ataques cardíacos decorrentes das sevícias) mas como norma a partir de 1971, quando a repressão partiu para o extermínio sistemático de militantes que eram capturados com vida e friamente executados; o sumiço dado nos restos mortais daqueles a quem barbarizara e matara; a cooperação com outros regimes militares na hedionda Operação Condor - tudo isto estava longe, muito longe, de caracterizar uma ditadura meia-sola!
Mas, se desta vez não cumpri o papel que tenho rotineiramente assumido, de expressar a justa indignação daqueles que conhecem a verdade dos fatos, felizmente minha omissão foi compensada pela categórica mensagem do professor de Ciência Política e ex-secretário nacional de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro, cuja carta foi publicada neste dia 19/02 no "Painel do Leitor" da Folha, seguida de uma curta e pífia nota da redação ("Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e instituciona"), reconhecimento implícito de que não havia mesmo como justificar o injustificável.
Eis a oportuníssima mensagem de Paulo Sérgio Pinheiro, à qual faço a única ressalva de que o Direito das nações civilizados e as diretrizes da ONU não estabelecem nenhuma diferenciação entre quem pega em armas e quem não as pega, quando fica caracterizado (como se deu, indiscutivelmente, no caso brasileiro) o exercício do legítimo direito de resistência à tirania:
"Golpe de Estado dado por militares derrubando um governo eleito democraticamente, cassação de representantes eleitos pelo povo, fechamento do Congresso, cancelamento de eleições, cassação e exílio de professores universitários, suspensão do instituto do habeas corpus, tortura e morte de dezenas, quiçá de centenas, de opositores que não se opunham ao regime pelas armas (Vladimir Herzog, Manuel Fiel Filho, por exemplo) e tantos outros muitos desmandos e violações do Estado de Direito.
"Li no editorial da Folha de hoje que isso consta entre 'as chamadas ditabrandas - caso do Brasil entre 1964 e 1985' (sic). Termo este que jamais havia visto ser usado.
"A partir de que ponto uma 'ditabranda', um neologismo detestável e inverídico, vira o que de fato é? Quantos mortos, quantos desaparecidos e quantos expatriados são necessários para uma 'ditabranda' ser chamada de ditadura? O que acontece com este jornal?
"É a 'novilíngua'?
"Lamentável, mas profundamente lamentável mesmo, especialmente para quem viveu e enterrou seus mortos naqueles anos de chumbo.
"É um tapa na cara da história da nação e uma vergonha para este diário."
Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político, mantém os blogs O rebate e Náufrago da utopia.
fonte: Comunique-se
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