O tropel de trezentos cavalos ecoou pelo vale quando o pedal do acelerador sentiu o toque da espora do dono. O motor do SUV respondeu rápido e os enormes pneus obedeceram à tração nas quatro rodas, fazendo o veículo escoicear em meio a uma saraivada de pedras e barro. Pelo retrovisor já não era possível enxergar a trilha, oculta por uma cortina de fumaça.
Abreu precisava vencer logo aquele trecho antes de chegar ao asfalto. Tinha um compromisso consigo mesmo e com a sociedade. Não podia faltar. Como sempre fazia, abriu o vidro e atirou para o mato as garrafas de água vazias e o saco plástico com os restos de frutas e sanduíches naturais. Ele se preocupava com a saúde, mas só aos sábados, quando queria estar bem disposto para vencer as trilhas. No domingo ele saía da trilha e do sério, e caprichava no churrasco.
No caminho parou no açougue do amigo para abastecer de carne o seu freezer. O amigo reservava para ele a melhor picanha, diretamente de uma fazenda no Amazonas. Enquanto colocava os pacotes em tríplices sacolas plásticas para evitar que rasgassem, Abreu calculou se as cervejas que tinha em casa no congelador ao lado do freezer seriam suficientes. Achou que sim. Só precisava mesmo da carne e de dois sacos de carvão.
Em casa, os pneus deixaram um rastro de barro na calçada, na entrada e no piso da garagem, mas a faxineira cuidaria de passar um esguicho em tudo na segunda-feira. Antes disso Abreu já teria levado o carro para lavar. O pessoal do posto não reclamava de lavar na segunda o barro seco do sábado, pois Abreu sempre deixava uma gorjeta para compensar o dobro de esforço, água e xampu que seu carro exigia.
Antes de sair da garagem olhou de relance para o jet sky ao lado da moto de 800 cilindradas. Logo ele levaria seu novo brinquedo náutico para a casa de madeira que tinha na marina, onde também ficava sua lancha de 28 pés e dois motores diesel. Abreu olhou para o relógio e viu que ainda dava tempo de tomar uma sauna antes do banho. Foi só quando saiu do banho quente que percebeu que a casa estava fria. Com a mão enrugada regulou o ar condicionado central
que mantinha sempre ligado. Caminhou para a sala e olhou outra vez para o relógio. Tinha chegado a hora.
Abreu acionou o interruptor e as trinta e oito lâmpadas incandescentes parcialmente embutidas no teto se apagaram. Em seguida desligou um a um cada abajur dos oito cantos de sua enorme sala. Por uma hora Abreu ficaria em estado de espera, igual aos doze leds coloridos dos aparelhos eletrônicos na estante.
Sentindo uma paz interior como há muito não sentia, Abreu foi até a janela e fechou as cortinas para evitar que as luzes da casa do vizinho estragassem a aura preservacionista que preenchia cada recôndito de sua alma. Se o vizinho não queria participar da "Hora do Planeta" o problema era dele. Cansado e com sono, Abreu desabou no sofá e sonhou que era Al Gore.
Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de comunicação e marketing.
31.3.09
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário