Vivi no Recife entre 1970 e 1980. Fui pastor, professor e líder denominacional. O personagem mais importante da cidade era Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Recife e Olinda. Somente era possível ouvi-lo pela rádio de Pernambuco nos programas da madrugada. A falta de liberdade de imprensa fez Dom Hélder desaparecer do noticiário. Vivíamos anos de ditadura militar. Para escutar Dom Helder, era preciso ir à igreja ou visitá-lo no Palácio do Bispo, onde recusou viver. Ele pernoitava no anexo de uma igreja antiga, assistido por algumas monjas. Viveu a simplicidade e a singeleza de coração.
Ainda que temido e perseguido pelos militares, que o consideravam o “Bispo Vermelho”, Dom Hélder era uma homem de paz e de oração. Era conhecido como um contemplativo madrugador em busca de comunhão com seu Deus. Sua presença tinha as marcas do Senhor. Sabia sorrir como uma criança. Era bom articulador de idéias. Via nos pobres o caminho de salvação. Não cria em assistencialismo, mas dava assistência quando não havia alternativas. Gostava de dizer: “quando presto assistência, me consideram um santo; quando questiono as causas da pobreza, me taxam de comunista”.
Em outra visita, o encontrei abatido, um tanto acabrunhado. Descobri que era pela morte de Dom Romero, assassinado pelos militares de El Salvador. Ele me disse que estava em pecado, e em pecado capital. Quando pedi que me explicasse sua agonia, afirmou que seu pecado era o pecado da inveja. Finalmente explicou: "como invejo Dom Romero, que foi morto enquanto celebrava a eucaristia." Santa inveja aquela. Ao recordar aquela história, lembro-me de outros bispos latino-americanos que foram profetas de Deus em nossas terras.
Uma pena que, hoje, estes bispos sejam como dinossauros em extinção. Restam uns poucos. Agora predominam os funcionários eclesiásticos a serviço de Roma. O pobre foi eclipsado. Desapareceu o profeta servidor. Apareceu o sacerdote.
O terceiro encontro se deu quando Dom Hélder havia regressado de Roma. Falava de Paulo VI, de suas depressões. Estava preocupadíssimo com a crescente secularização européia. Não sabia se era possível re-evangelizar a Europa. Ele contou-nos que, quando o Papa perguntou o que fazer, respondeu: “deixe o Estado do Vaticano e a Catedral de São Pedro. Vá viver como um pobre numa igreja singela, num bairro marginalizado, e a Europa perguntará pelo evangelho outra vez”.
Como pastor batista, li os poemas de Dom Hélder. Inspirei-me em sua vida e missão. Invejava sua vida de oração. O vi marcado com a realidade do Cristo. A lamentar somente que um novo Papa, desprezando os avanços de reforma e de ecumenismo do Vaticano II, tenha revertido o trabalho evangelizador de Dom Hélder. Hoje, Dom Hélder ainda é um paradigma daquilo que a Igreja pode vir a ser. Recordar é fazer acontecer.
Manfred Grellert, pastor batista e diretor de formação cristã da Visão Mundial Internacional.
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