NUNCA TIVE INTIMIDADE com os gatos e sempre os olhei de longe, com desconfiança.
Preconceito meu, sustentado por uma estória que minha mãe contava de um gato que havia matado um padre. Hoje sei que ele não o teria feito se não tivesse razões...
Os bichos que amo são os cachorros e eles me amam. Meu amor pelos cachorros se consubstanciou num artigo que escrevi sobre minha cadela Lola, a pedido da Redação da Folha. Olhando para os seus olhos que estavam fixos nos meus, eu me perguntei: "O que será que ela pensa de mim?" Sobre isso escrevi.
Cães, nem sei quantos tive: pastores, dobermans, dálmatas, boxers, weimaraners, cockers... Os dobermans foram os mais obedientes; os boxers, os mais mansos e efusivos. A Nina, dálmata, foi a mais desobediente e não gostava de crianças. Era preciso trancá-la quando havia crianças em casa.
Menino, eu sonhei ter um cãozinho. Mas nunca me foi permitido ter um. Realizei o meu sonho simbolicamente: comprei um caderno de desenho dos grandes no qual fui colando fotografias de cachorros que eu recortava de revistas . Meu amor pelos cachorros assim se realizou platonicamente.
Mas nunca tive simpatia pelos gatos. Também eles nada fizeram para que eu gostasse deles. Os cachorros são comunicativos, querem fazer amigos, têm um humor italiano, fazem barulho, estão sempre sorrindo com o rabo, gostam de brincar e seu único desejo é agradar os seus donos.
Uma amiga enviou-me um e-mail contando da sua cadela labrador, adolescente, chamada Lua. Pois a Lua gosta de plantas, especialmente bromélias, que arranca do jardim e deposita na porta da cozinha com latidos de felicidade, que, se traduzidos, querem dizer: "Eis o presente de flores que colhi no campo para você...".
Os cães se parecem tanto com os humanos! O que já havia sido constatado por um dos nossos antigos ministros, que, inquirido sobre as razões que lhe permitiam transportar o seu cão em carro oficial, explicou: "Os cachorros também são seres humanos...".
Se isso tivesse acontecido no Egito Antigo, e um ministro fosse inquirido pelo seu uso das carruagens oficiais para transportar o seu gato, a resposta seria mais surpreendente: "Não sabe o senhor que os gatos são seres divinos?". Sim, no Egito os gatos eram deuses. Talvez algo dessa teologia tenha escorrido até nós. Pois não dizemos de uma mulher bonita "ela é uma deusa" e "ela é uma gata"?
Mas comecei a mudar de ideia sobre os gatos quando minha filha me deu um gato de presente. E logo ficamos amigos, eu e o gato.
Hoje o meu médico me enviou um artigo que apareceu em 26/7/ 07 no "The New England Journal of Medicine", um dos mais respeitados periódicos das ciências médicas. Sobre um gato chamado Oscar.
Oscar vive numa instituição que acolhe pessoas em estado terminal. Diariamente, segue uma rotina. Abre os olhos preguiçosamente e põe-se a fazer aquilo a que os médicos dão o nome de visita: vai de leito em leito, sobe na cama, cheira o ar e faz o seu diagnóstico. Se não é para acontecer naquele dia, ele desce e vai para o leito seguinte, onde repete o procedimento. Se, por acaso, sua misteriosa sensibilidade detecta o cheiro ou as vibrações ou a música da morte, ele se aloja junto ao moribundo e a enfermeira sabe que é preciso avisar os parentes.
Isso me deixou apreensivo porque o meu gato tem insistido em dormir na minha cama -e é preciso expulsá-lo à força. Será que faz isso por gostar de mim ou para que os outros avisem meus parentes?
Rubem Alves, na Folha de S.Paulo.
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13.6.09
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