8.7.09

É gente humilde, que vontade de chorar

Dá uma dor no peito quando vemos que a nossa agenda de preocupações femininas passa longe da vida real de milhões de mulheres no Brasil. Uma moça de 29 anos, Manuela Costa, fez na quinta-feira passada o que toda grávida faz no momento sagrado de dar à luz. Procurou um hospital. Nós, jornalistas do blog 7×7, e vocês, que comentam, jamais passaríamos pelo pesadelo de Manuela. Teríamos uma vaga numa maternidade, nosso obstetra, e o risco de vida, para nós e nosso bebê, seria mínimo.

Mas Manuela foi ao Hospital Municipal Miguel Couto, na Zona Sul e nobre da cidade, para uma emergência. Estava em dores, no sétimo mês de gestação, o que tornaria o parto prematuro. O médico plantonista, sem condição de atendê-la porque não havia leitos, simplesmente mandou Manuela pegar um ônibus para uma maternidade em São Cristóvão, a Fernando Magalhães – e rabiscou no braço dela (foto) o número do ônibus e o endereço da maternidade. Pode-se levar uma hora de ônibus entre os dois hospitais, dependendo do trânsito. A placenta de Manuela tinha descolado. Ela perdeu o bebê.

Além de Manuela, mais duas grávidas passaram pelo mesmo processo absurdo, com braços rabiscados, mas tiveram mais sorte. Maria José, 27 anos, moradora da Rocinha, e Valquíria Bernardo, de Duque de Caxias. Ambas tiveram meninos e passam bem.

Manuela ficou mal, foi para a Unidade de Tratamento Intensivo. O médico foi afastado e repreendido publicamente por todas as autoridades de saúde do Rio. E pelo prefeito, Eduardo Paes, que disse: “Não há crise no sistema de saúde que justifique sua atitude desrespeitosa. Se as acusações forem confirmadas, ele será demitido”. Ex-diretor do Miguel Couto, o vereador Paulo Pinheiro enxergou no caso uma violação de direitos humanos: “Descolamento prematuro de placenta exige operação de emergência. Se não há leitos na obstetrícia, que fosse levada para o centro cirúrgico”.

Nessa história de horrores, o braço rabiscado é talvez a cereja estragada do bolo indigesto, porque reflete o quê? Indigência – não há papel e caneta no Miguel Couto, além de 11 leitos da obstetrícia estarem interditados por obras? Descaso com o ser humano, como se mulheres estivessem sendo marcadas como vacas? Pressa, inexperiência e bloqueio emocional de plantonistas jovens que ficam mais de 24 horas em hospitais vendo gente chegar com todo tipo de ferimento, por tiro, faca etc? O juramento médico é jogado fora junto com o diploma? Estamos virando pedras? Não se pode chamar uma ambulância para levar uma grávida em situação de risco para outro hospital?

O médico acusado pode ser condenado a até oito anos de prisão por recusar atendimento às três grávidas – seria indiciado por homicídio culposo, caso se confirme que o bebê de Manuela morreu por omissão de socorro. Mas ele não pode ser o único culpado.

Muito ainda virá à tona na investigação do caso. Já se sabe que o plantonista não teria condições de avaliar o risco de Manuela e seu bebê porque o único aparelho no Hospital Miguel Couto para identificar casos de sofrimento fetal está quebrado desde fevereiro. Vistoria ontem na maternidade do Miguel Couto revelou a falta de pelo menos seis enfermeiros e 18 técnicos em enfermagem.

Não tenho a menor ideia das condições – humanas e de equipamentos –enfrentadas pelos plantonistas no Miguel Couto. Não recorro ao sistema de saúde pública. Mas sabemos que esse caso só ganhou as manchetes porque um bebê morreu. Quantos milhões de mulheres grávidas são tratadas assim no país, e ficamos sem saber de nada? No estado do Rio de Janeiro, são registradas 76 mortes para cada 100 mil partos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera aceitável um índice de 20 mortes para cada 100 mil partos.

Fiquei revoltada de cara com o médico que rabiscou o braço da grávida e mandou que ela pegasse um ônibus para outra maternidade, longe dali. Mas o que me preocupa mais é: será um caso isolado? Vai resolver o problema? Quantas Manuelas ainda perderão seus bebês ou a sua própria vida por um conjunto de deficiências e despreparo que pune a maioria absoluta da população? Nem a CPMF deu jeito. Eu estaria disposta a pagar ainda mais impostos se tivesse certeza de que o dinheiro não sumiria nos ralos da incompetência e da corrupção – se eu soubesse que poderia ajudar a salvar a vida do bebê de Manuela.

Ruth de Aquino, no blog 7 por 7.
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