Minha mãe nunca me permitiu criar gatos.
Surgia uma ninhada no pátio e já roubava leite na geladeira e servia num pires. Arrumava uma casinha em caixa de papelão, juntava trapos, cobertas de meus olhos e fazia travesseiros de toalhas antigas. Acendia a pressa de orfanato em todas as lâmpadas da garagem.
Não me interessava perguntar como os filhotes chegaram em casa. Do terreno baldio? Do telhado?
Era impelido a atendê-los. Peludos, fofos, mirrados, miados febris. O gato é um passarinho que engoliu as asas, por isso salta tão alto.
Ofecerer o pratinho de leite me deslumbrava de gentileza. Se fui pai na infância deve ter sido equilibrando a pesada garrafa de vidro.
Minha paternidade durava uma tarde, escurecia, a mãe descobria o esconderijo pela movimentação secreta e nervosa, por mais que sufocasse os sussurros com os irmãos. Ela ralhava que não poderia adotá-lo. Que não cuidava nem de mim. A despedida doía no osso. Eu já tinha dado até nome. Acenava ao chão, sem coragem de erguer o pulso.
Abandonei muitos felinos antes da maioridade.
Na semana passada, vi um gato entrando na residência de minha mãe.
Gerou raiva. Agora ela decidiu cuidar de um. E unicamente para ela, no momento em que mora sozinha.
Desencadeou um matagal de ciúme. Cocei a barba para podar o desconforto.
Um gato preto com listras brancas. Passeando pelo pátio, correndo pela sala, fugindo de mim. Brilhoso, gordo. Ela deve alimentá-lo com requinte e fartura. Sacana!
Não juntei coragem para questioná-la, alisar o trauma, arrancar desculpas de sua horta. Encabulei, regressando aos meus nove anos.
Acompanhei a expedição do bichano pelos aposentos. Sentava no sofá e logo pulava para a varanda. Apresentava uma intimidade com as frestas que não alcancei quando pequeno. Dono de patas arteiras e vôos repentinos.
Telefonei para o meu irmão Rodrigo pronto a desabafar. Ele me dissuadiu da mudança de hábitos, respondeu que a mãe não possuía gato de maneira nenhuma. Não seria possível. Não correspondia ao seu feitio.
Mesmo?
Na manhã seguinte, repeti a visita. E nada do gato pelos corredores. Nenhum pêlo, pegada, alma de arrancada. Nem comida no armário.
Atravessei o portão convicto das alucinações. A carência da infância produzia seus efeitos colaterais.
Ao virar o corpo em direção à rua, enxerguei uma sombra matutando a grama. Era ele!
Manhoso, entrou pela janela emperrada do porão. Aquela janela que não tem como lacrar.
Entendi que a mãe tem um gato, mas ela não sabe.
Não deixa de ser uma deliciosa vingança.
Fabrício Carpinejar
arte: Paul Klee
18.7.09
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