4.7.09

Um minuto

Os pais rezavam antes do almoço e da janta. E nos obrigavam a acompanhar.

Restava engolir a fumaça e adormecer a pele na nuvem cálida de temperos. A comida esfriava à toa.

Eu me irritava com a demora. Empunhava o garfo para o ataque e tinha que suspender os movimentos selvagens com "Um minutinho, meu filho, a oração..."

Ave-Maria era um couvert artístico em casa. Uma entrada inofensiva de verduras.

Desesperador quando o pai estava inspirado e cumpria um sermão ao invés de somente acenar para Deus.

Na pressa semanal, escutava nitidamente apenas seu sinal da cruz. Durante sábados e domingos, o pai exagerava no discurso diante da possibilidade da sesta e da volúpia do quarto trancado com a mamãe. O sexo o tornava messiânico. O sexo o impelia a acreditar na vida eterna. Um gemido levava a outro.

Ele agradecia tanto que eu perdia o apetite.

Comer sempre foi um adiamento. Arrebentei a toalha de mesa pelo controle sufocado dos dedos. Puxava os fios para me distrair. Do meu assento, a madeira da mesa já aparecia contornando o prato.

Às vezes, ele pedia aos filhos para conduzir a reza e mostrar união familiar. Engasgava, soluçava, tropeçava no colarinho apertado da escola. Lembro que fiquei de castigo ao saudar o campeonato gaúcho do Inter.

Gremista, enfureceu-se: "Futebol não é religião". Imagina se fosse...

Achava uma ironia o agradecimento divino ao servirem vagem e bife de fígado. Agradecer aquilo só podia ser uma humilhação. Nestes momentos, entrava em ressaca gustativa e torcia por um terremoto, o soar da campainha, o toque do telefone. Ou que o timbre paterno virasse a Voz do Brasil com uma hora ininterrupta de notícias.

A saudade apressa túmulos, é o que penso agora.

Não partilho de crenças católicas, abandonei esse hábito aos oito anos com o divórcio dos pais, sofro de ansiedade, mas não consigo interromper mais o minuto de silêncio da comida.

Prato feito, hesito, espero a oração em mim. Dobro as mãos como um guardanapo. Espio para cada um de meus filhos como quem limpa o acúmulo da infância da garganta. Parece gripe, mal-estar. Espaço a respiração e giro o rosto para qualquer premonição de som: o vento chiando na janela, o relógio martelando seus pássaros, os latidos dos cachorros.

Atento como porta de igreja. Certo como um mendigo na escada.

Meus talheres permanecem bentos, religiosos do suspiro.

Fabrício Carpinejar
arte: Max Ernest

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