29.8.09

No caminho com Isaque

Hoje cedo, por volta de oito horas da manhã, o Senhor me pediu que entregasse Isaque em sacrifício. Não era bem um pedido que eu gostasse de escutar. Na verdade, fora muito bem-sucedida em evitar ouvir a voz do Senhor nesses últimos tempos, envolvendo-me em um oceano de obrigações e atividades “inadiáveis”.

Eu sabia que ele estava com saudades. Até um pouco enciumado. Sabia que esperava ocasião propícia para falar e ser ouvido. O momento ideal. O quarto secreto. Mas eu fugi, inconscientemente, fugi o quanto pude. Preferi exercer um pouco mais a ilusão do controle, a autosuficiência. Preferi cultivar um pouco mais os instantes de dúvida, que tanto nos confortam. Porque as certezas costumam ser tão definitivas. Enquanto estamos em dúvida é cômodo e até prazeroso arriscar e errar, sem culpa.

Mas quando Deus fala e nos convence – porque quando ele fala, a não ser que sejamos muito cabeças-duras, ele invariavelmente nos convence _ a certeza vem e, com ela, as coisas complicam para o nosso lado. Uma nova atitude nos é requerida. Uma mudança de rota ou mesmo uma perseverança na mesma rota, mas que nos causa desconforto, porque melhor nos seria seguir em outra direção. Quando Deus fala, sua voz se sobrepõe às nossas muitas vozes, e nesse instante é pegar ou largar. Obedecer ou dar de ombros.

A passagem do livro de Gênesis que narra a entrega de Isaque no Monte Moriá é uma das mais espantosas de toda a Escritura. Isaque é o filho único de Abraão. Mas não se trata apenas de um filho. Isaque é o encontro pelo qual Abraão esperou a vida inteira. É o significado de sua existência, numa cultura em que um homem sem filhos é um homem sem história, sem descendência.

Isaque é o zênite de uma trajetória com muitas passagens que se dão no escuro. Que começa, em si, na escuridão de uma noite no deserto, quando um homem se deita num travesseiro de areia a fim de contemplar estrelas. Ele olha, do terreno seguro de sua tenda, a imensidão de um universo inescrutável, e, no vazio, recebe uma promessa: mais que essas estrelas será a tua geração, homem de fé.

Na escuridão daquele deserto, Abraão recebe Isaque em promessa e por ele espera durante 25 anos. Isaque é mais que um filho, portanto. É a luz que finalmente brilha no fim do túnel de sua velhice. Abraão tinha cem anos quando Isaque nasceu.
Entregar Isaque em sacrifício pode ser lido, então, como renunciar àquilo que atribui significado a nossas vidas repletas de incertezas e de vazios.

Para Abraão, Isaque era ainda uma pessoa com quem ele podia dialogar serenamente. “Os dois caminhavam juntos.” Havia respeito e cumplicidade. Havia afeição, amizade e admiração. Abraão olhava para Isaque e via nele o objeto de seu amor, o milagre e o poder de Deus. Isaque olhava para o pai e via nele um companheiro com quem tinha prazer em caminhar.

Se Abraão amava a Isaque mais do que tudo, é certo que Isaque também amava Abraão com profundo amor. Com ele, podia conversar sem medo. “Pai?” “Sim, meu filho.” “Está tudo aqui, a madeira, o cutelo, a corda. Mas onde está o cordeiro para o sacrifício?” Havia entre eles liberdade e graça. Isso torna a cerimônia do holocausto um capítulo ainda mais dramático e quase totalmente incompreensível.

Afinal, o Deus que pede a Abraão o único filho não é criatura sádica e deceptiva, que primeiro dá apenas para ter o prazer de tirar. Um déspota que esfrega as mãos e finaliza suas frases com uma gargalhada diabólica: “Vamos ver se me obedece, ra ra ra!”

Ainda assim, não parece terrível que nessa ocasião ele não se importe em ficar parecido com Moloque, o deus pagão que pedia crianças para serem queimadas vivas nas mãos fumegantes de suas gigantescas estátuas? Como permitiu-se identificar com tão temível criatura? Por que não se importou em constranger o pobre Abraão a esse vexame? E por que cargas d´água vem agora pedir de mim que entregue, eu mesma, o meu Isaque? Por que não posso mantê-lo? Ele não tem nada melhor para fazer nesta segunda-feira chuvosa? Não tem crianças pobres para salvar, guerras para exterminar?

Sacrificar aquilo a quê nosso coração se apegou com amor já seria difícil o bastante. Que dirá entregar no altar sagrado da renúncia aquele que a nós também dirige um olhar de afeto. Ou aquilo que nos confere valor? Ou aquela causa que nos dá sentido à existência? Pode ser uma pessoa, um trabalho, um partido político, um amor ou uma amargura antigos. Porque ódios antigos também dão sentido à existência de muitos. Isaque, então, pode ser tudo aquilo que ocupou um espaço demasiado grande em nosso coração, a ponto de nos tirar a paz e de provocar ciúmes no Senhor.

O Monte Moriá, contudo, não é destino de covardes. E a travessia até ali é uma jornada de três dias. Eram cerca de 80 quilômetros, a pé, até o local do sacrifício. Três dias é tempo suficiente para repensar o significado de Isaque e entender por que o Senhor, vez ou outra, nos faz esses pedidos tão contundentes.

Três dias é tempo suficiente para sofrer a aflição da entrega, morrer a morte da cruz (“nega-si a si mesmo e segue-me”) e ressuscitar um ser humano renovado. Mas Abraão, diz o livro de Hebreus, acreditava que Deus poderia trazer o filho de volta à vida. Ele tinha uma promessa de descendência “mais numerosa que as estrelas do céu”. Ele sabia onde estava pisando, embora isso não diminua sua experiência de desapego.

E eu, Senhor, tenho o quê? Você me pede que entregue Isaque, mas não me promete nada em troca? Isso soa meio injusto para mim.

Por enquanto, ele me oferece sua companhia durante a travessia. Mais adiante, poderá me mostrar um pouco mais. Não é conveniente que eu o saiba agora.

Decido obedecer e esperar. Baixo as armas. Coloco a lenha sobre o altar. E vou morrendo um pouco enquanto tomo o menino pelas mãos.

Marília Cesar

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