5.8.09

O gato que gostava de cenouras

O TELEFONE tocou. Queriam uma entrevista sobre o livrinho "O gato que gostava de cenouras". Não entendi o nome da revista porque estou ficando meio surdo e, por vergonha, não pedi que repetissem. A entrevista começou...

Gato gosta de peixe, de rato e de passarinho. Gato não gosta de cenoura. Numa terra de gatos, um gato que gostasse de cenoura seria uma aberração, uma vergonha para os pais, motivo de chacota e zombaria na escola...

O nome dele era Gulliver; carinhosamente, Gullinho. Seus pais não sabiam do seu gosto pelas cenouras. Comer cenouras era um ato secreto, escondido. Seus pais só se preocupavam com o fato de que ele não comia os deliciosos ratinhos recém-nascidos, os pardais saborosos, os peixes cheirosos que lhe traziam para abrir o apetite.

Gullinho era diferente dos demais gatos. E isso fazia seus pais sofrerem muito porque o que os pais mais desejam é que seus filhos sejam iguais aos outros.

O fato era que os pais de Gullinho ignoravam que ele, escondido, comia a comida proibida, cenoura... A mãe acabou por desconfiar das incursões secretas do Gullinho e disse ao pai que seria melhor segui-lo para ver onde ele estava se metendo. Foi o que o pai "sogateiramente" fez.
Gullinho caminhava com cuidado, olhando para todos os lados para ver se estava sendo seguido. Andou até chegar ao sítio do senhor Joaquim. Havia canteiros com todos os tipos de hortaliça. Gullinho foi até o canteiro de cenouras e -oh! Coisa horrenda para um pai gato- começou a comer cenouras.

O pai do Gullinho quase morreu de susto. Seu filho que ele sonhara tigre não passava de um coelho. E chorou amargamente...

Resolveu procurar auxílio. Procurou um padre que ameaçou Gullinho com o Inferno. "Deus é gato. Deus ordenou que nós comêssemos peixes, ratos e passarinhos.Comer cenoura é pecado mortal!" Mas não adiantou...Gullinho continuou a vomitar peixes, ratos e passarinhos...

Aí eles o levaram ao psicanalista. A análise durou vários anos. Mas o que o doutor Gatan lhe dizia com linguagem complicada não alterava o seu gosto: ele continuava a gostar de cenouras...

Foi então que um professor da escola chamou o Gullinho para uma conversa e lhe disse: "O nosso destino está escrito nas células do nosso corpo num "chip" bem pequeno chamado DNA. Ele já está no feto, determinando a cor do seu pelo, a cor dos seus olhos, se você vai ser menino ou menina, daltônico ou não, canhoto ou destro. Você nada pode fazer para mudar as ordens que estão no seu "chip". E acontece o mesmo com o nosso gosto por ratos ou por cenouras... Não é pecado, como o padre disse, porque foi o DNA que o fez assim... Não é resultado de educação porque foi o DNA que o fez assim... E nem pode ser curado, como se fosse uma doença, porque é o DNA que o fez assim... Igual ao daltonismo".

Gullinho olhou em silêncio para o professor e, pela primeira vez, entendeu tudo. E ele sentiu que um enorme peso fora tirado de cima dele. Entendeu então que ele podia gostar de cenoura porque fora o DNA que o fizera assim -e ninguém tinha nada com isso.


Eu ainda estava na cama quando minha filha me acordou.

"Pai, você apareceu na "G Magazine", a reportagem do gato..."

"Mas o que é "G Magazine'?", perguntei.

Aí eu entendi por que o assunto da entrevista tinha sido "O gato que gostava de cenouras"...

Rubem Alves, na Folha de S.Paulo.

4 comentários:

carlota disse...

Genial !!!! O conto é maravilha de verdadeiro entendimento. E as circunstâncias ...uma jóia...
Ainda bem que era Ruben Alves, senão a revista seria processada !!!!
Tomara muita gente saiba deste continho, a ver se assim vão esquecendo os "cliches" acumulados na história.

vitorferolla disse...

que viadagem, hein? =P

Soraia disse...

Bem ingenuo, o continho bobinho.

Anônimo disse...

Ah!! Fala sério!!! Rubem Alves é show!!!Por mais que achemos determinadas escolhas estranhas, bizarras não temos o direito de julgar. Gostei muito do texto!!

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