Tenho um palpite para explicar o fato de termos nos conformado com os desmandos, em vez de nos tornarmos cada vez mais intransigentes nessa matéria, como seria de esperar depois de Collor.
Numa simplificação grosseira da história da filosofia, existem duas matrizes de sistemas éticos. A primeira, que podemos chamar de deontológica, têm como expoentes Platão e Immanuel Kant. Para esses autores, são os princípios que importam. Uma regra como "não matarás" ou "não mentirás" valem incondicionalmente, seja porque estão amparadas pela ideia de Justiça, por Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade metafísica.
Na outra ponta está o consequencialismo, cujos grandes defensores incluem Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Basicamente, eles dizem que não existem princípios externos abstratos como a ideia de Justiça que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é através das consequências que acarretam. Vale dizer que são boas as ações que engendram bons resultados. No caso específico de Bentham (conhecido como pai do utilitarismo), o que importa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula: "o maior bem para o maior número de pessoas".
Embora essas duas matrizes sejam em princípio mutuamente excludentes no plano intelectual, nós, seres humanos, estamos sempre divididos entre elas. E por boas razões. Levados até o fim, tanto a ética deontológica quanto o consequencialismo produzirão paradoxos que não estamos dispostos a aceitar. A impossibilidade de mentir em qualquer caso preconizada por Kant me levaria, por exemplo, a admitir a agentes da Gestapo que eu escondo judeus em meu sótão, delito que me custaria a vida bem como a dos fugitivos. Já o consequencialismo me obrigaria a aceitar como válido o ato do médico que mata o sujeito saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pacientes que necessitavam de transplantes.
De algum modo, a rápida sucessão de escândalos nos afastou da ética de contornos claramente deontológicos e nos empurrou para uma matriz mais consequencialista-pragmática. É como se disséssemos a nós mesmos que, uma vez que todos os políticos roubam, só o que nos resta é escolher aqueles que, sem negar sua natureza, se mostrem mais eficientes ao promover o bem-estar geral. Foi assim que os sucessos econômicos ajudaram Lula a superar a crise do mensalão e o levaram a desenvolver anticorpos contra todas as denúncias. Pior, seus anticorpos acabaram imunizando também aliados do quilate de Renan Calheiros e José Sarney, para ficar apenas na categoria de presidentes do Senado.
Não tenho nada contra as éticas consequencialistas, que, em várias esferas, como a da bioética, funciona melhor do que os códigos puramente deontológicos, mas receio que nós estejamos exagerando. Não podemos, apenas porque a economia vai bem e não vemos alternativas viáveis aos atuais políticos, simplesmente esquecer todo e qualquer compromisso com o decoro republicano. Se o cinismo se impregnar definitivamente na vida pública, estaremos rifando nossas chances de erigir uma sociedade democrática com padrões de decência política compatíveis com os de nações do Primeiro Mundo. Já não sonho com isso para mim ou meus filhos, mas quem sabe para os netos que ainda não tenho.
trecho de texto do Hélio Schwartsman na Folha Online.
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