27.9.09

O rio

“Vibrante nas espadas e na paixão
e adormecida na hera
só a vida existe.”
Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires, La Recoleta

Tudo caminha para um mesmo lugar:
tudo vem do pó e tudo volta ao pó
Quem sabe se o alento do homem sobe para o alto
e se o alento do animal desce para baixo, para a terra?”
Eclesiastes, 3:20,21

“Aqui é um lugar de desamor
Tempo de antes e tempo de após
Numa luz mortiça: nem a luz do dia
Que reveste formas de lúcida quietude
Transfigurando sombras em beleza transitória
E cuja lenta rotação sugere permanência
Nem a escuridão que purifica a alma
Esvaziando o sensual com privação
Purgando de afeto o temporal.
Nem plenitude, nem vazio. Apenas um bruxuleio
Sobre faces tensas e repuxadas pelo tempo
Distraídas da distração pela distração
Cheias de fantasmagorias e ermas de sentido (…)
Desce mais fundo, desde apenas
ao mundo da perpétua solidão
Mundo não mundo, mas o que não é mundo
Escuridão interior, privação
E destituição de toda propriedade,
Ressecamento do mundo dos sentidos,
Evasão do mundo da fantasia
Inoperância do mundo do espírito;
Este é um dos caminhos, o outro
É o mesmo, não em movimento
Mas imóvel, enquanto o mundo se move,
Em apetência, sobre seus metálicos caminhos
De tempo passado e tempo futuro.”
T.S. Eliot, Quatro Quartetos, Burnt Norton, III

***

O inaceitável mundo da “perpétua solidão”, da vida “adormecida na hera”, o ultrajante universo onde o pó reencontra o pó constitui o pesadelo que os reinos etéreos e os sóis de ouro procuram enfrentar. Mas as espadas que enfrentam aquele pesadelo podem ser delirantes, a ilusão de um homo sapiens que descobriu o tempo futuro no gelo e no sal, na carne conservada para os dentes ávidos de amanhã, e pretende com o conhecimento do futuro tornar-se invulnerável não apenas à fome, mas também à morte.

Como um rio que tem seu curso invertido, a esperança penetra na história, pela revelação ou pelo delírio, mas sempre caudalosa. Miguel de Unamuno assim descreve esse rio singular: “Noturno, o rio das horas flui / de seu manancial, que é o amanhã / eterno…”.

A suspeição que lançamos em relação ao manancial da esperança também foi lançada pelo (e contra) o autor de Eclesiastes. Cabe a nós um destino mais elevado que o mármore frio e a indiferente hera? Também Hamlet vê-se acossado pela dúvida fundamental: “Morrer! Dormir; dormir. Dormir, sonhar talvez: mas aqui está o ponto de interrogação; porque no sono da morte, que sonhos podem assaltar-nos, uma vez fora da confusão da vida?”

O dique rompido da esperança é um bálsamo sobre a ansiedade da morte e do destino; arriscado é nadar naquelas águas sem a cautela de Hamlet e do Coelét. A dúvida sobre o manancial da esperança – se as divinas mãos ou a loucura humana – quando mantida, pode nos desesperar – e, portanto, nos salvar.

Alysson Amorim, no blog Amarelo fosco.


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