21.10.09

Passarim

Foto: Antonio C. B. C. Lopes

Passarim

Baseado em fatos verídicos

'Passava o dia no quintal, esvoaçando e cantando entre as mangueiras. Bem- te-vi que se preza canta o tempo inteiro. Tinha uma coloração parda no dorso e amarela viva na barriga. No alto da cabecinha passava uma listra branca, assim como na garganta; a cauda era toda preta.

Estava bem na mira do menino, a uns 60 graus do estilingue novo, recém feito com tiras de borracha e a forquilha amarrada ainda verde.

O menino vivia de ouvido no ar, imaginando ser um soldado a procura do inimigo, ou, vai saber, o próprio Sargento Vic Morrow da série da TV, pronto para abater seu primeiro troféu.

Aí o bem-te-vi cantou. Aquilo encheu o coração do menino, que sentia a batedeira na boca enquanto encaixava a pedrinha no couro do estilingue. A pedra saiu voando em direção ao alvo. O tiro foi certeiro… a pedra atingiu em cheio o peitinho amarelo do bicho! Mas, para surpresa do menino, o pássaro permaneceu imóvel, olhando fixamente para o caçador. A pedrinha simplesmente havia quicado nas penas e caído direto no chão, sem mesmo abalar o passarinho.

O menino, assombrado, percebeu que não havia medo no olhar do bem-te-vi. A principio teve até um pouquinho de culpa, mas aos poucos aquilo se transformou em um misto de alívio e gratidão. Em seus 12 anos de vida, sentiu pela primeira vez uma reverência à vida e a celebração da liberdade. Descobriu que a face de Deus costuma aparecer nas pequenas coisas. Aprendeu a cultivar esse sentimento.

Adulto, lembra-se da história e procura entender o que realmente aconteceu. Pensa em explicações lógicas: haveria um galho à frente que não percebera? O projétil perdera a força vibrando no ar? Sua ansiedade de caçador imaginou tudo isso?

Não. Tudo aconteceu exatamente assim. O homem conclui que não tentará achar mais nenhuma explicação. A certeza que carrega é que, naquele dia, um menino cresceu rápido para se tornar um homem de bem.'

Helena Beatriz Pacitti, outubro de 2009.

2 comentários:

Alzira Sterque disse...

Lindo e sensível. Amei!!! Ainda mais porque vivo num lugar que é cheio de bem-te-vis, sabiás, canários amarelos da terra,colibris beijadores das flores que planto, coleirinhas, joões-de-barro...e amo contemplá-los e ouvi-los diariamente.
Sei muito bem do que fala.Ao mesmo tempo me pego triste, pois sei que muitos não podem desfrutar de toda essa natureza.
Mas fica uma pergunta:O menino virou homem, mas quando os homens resgatarão os meninos que um dia foram?

Timilique! disse...

Oi, Alzira. Aprecio seus comentários, sempre pertinentes.
Curiosamente, ouvi esta história na semana passada do próprio menino que virou homem!
Que privilégio lindo quando alguém partilha algo precioso assim conosco.
Um beijinho
HB

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