O VINICIUS ESCREVEU um poema intitulado "O Haver". O "Haver" era o nome de uma página dos antigos livros de contabilidade onde se registrava o que havia sobrado, o ganho, o "a receber", por oposição ao "Deve", onde se registravam as dívidas, o que deveria ser pago. É um poema de velhice, balanço do que sobrou na vida.
Eu também já estou no tempo de fazer o balanço entre as dívidas e os haveres. Minha vida se divide em três fases. Na primeira fase, o meu mundo era do tamanho do universo e era habitado por deuses, verdades e absolutos. A esperança que eu escrevia na página do "Haver" era do tamanho da luz do sol ao meio-dia.
Na segunda fase, meus haveres encolheram. Meu mundo passou a ser habitado por heróis revolucionários que portavam armas e cantavam canções de transformar o mundo. A esperança que iluminava o universo passou a iluminar apenas os horizontes da história.
Na terceira fase, mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as esperanças teológicas e políticas, fiquei pobre de verdade e o meu mundo se encolheu mais ainda -e chegou não à sua verdade final, mas à sua esperança final, que teima em se alegrar com coisas pequenas.
A esperança é a última que morre. O Vinicius reconheceu essa chama entre os seus haveres e a chamou de "pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas dão o nome de esperança".
Diferente do otimismo. O otimismo é "sorriso por causa de", quando há razões para sorrir. A esperança é "sorriso a despeito de", quando não há mais razões para sorrir.
A imagem que o Vinicius escolheu para descrever sua pequena esperança é comovente: "Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas, essa tristeza diante do cotidiano; ou essa súbita alegria ao ouvir passos na noite que se perdem sem história".
Álvaro de Campos escreveu um verso bruto: "E a luxúria única de já não ter esperanças?" Não ter esperança é estar em paz, não ter causas por que lutar, o fim do esforço... Viver o presente, o presente apenas, como se o futuro já não se anunciasse, como se fosse inútil saber o que ele anuncia.
A luz do círio aceso se transforma em sombras fantasmagóricas nas paredes arruinadas daquilo que, no passado, foi uma catedral onde moravam os deuses. Muitos deuses e muitos heróis moraram dentro de mim. Hoje, não sei onde se meteram... Sou uma catedral em ruínas... Mas aí eu ouço passos na noite...
Olho e vejo que alguém, no escuro, carrega uma chama. Me animo. Escrevo: é o meu jeito de soprar cinzas. Meu círio se acende. Fico alegre. A luz põe alegria no olhar.
O que é um olhar? O olhar não se encontra nos olhos. Não adianta olhar fundo nos olhos. O olhar não está lá. Foi Sartre que disse que "o olhar do outro esconde os seus olhos." Cecília Meireles confirma: "O sentido está guardado no rosto com que te miro". Não os olhos; o rosto... Os olhos, retirados do rosto, são peças anatômicas sinistras. O segredo do seu olhar mora no rosto com que miro você.
Quero ver o seu olhar, Marina. Quero ver o seu rosto, onde mora o sentido, e não dois olhos retirados do seu rosto. O seu rosto, moldura dos seus olhos, fala mais e diferente que os seus olhos. Não quero ver os seus olhos na televisão. Quero ver o seu rosto, onde mora o seu olhar...
Rubem Alves, na Folha de S.Paulo.
13.10.09
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
é isso aí gente!
Marina Silva Presidente.
Pavarini! Um texto assim, é, roo a unha. Abraço, Sílvio.
Devemos abandonar a esperança, ela nos escraviza.
Postar um comentário