14.11.09

A morte não presta

Ela só ensina uma coisa aos vivos: matem-me se forem capazes

Morei por onze anos em uma rua na Vila Hamburguesa em São Paulo que começava no mundo dos vivos e terminava no dos mortos. Ou vice-versa. Eram oito casas do lado de cá e umas cem do lado de lá. Minha rua era a continuação da aleia do cemitério. Quando atravessava o muro, ela adquiria o nome de um vulto célebre: Numa de Oliveira, o banqueiro da Semana de Arte Moderna de 1922. Nessa estranha vizinhança de mortos com vivos, estes tratavam de viver suas vidas ignorando a realidade que se mostrava atrás dos muros em que repousavam os que já foram.

A rua cheia de barulho de crianças, baloeiros niilistas e senhoras fofoqueiras não deixava ninguém quieto. Além de tudo dava para uma praça – e quem mora perto de praça tem de renunciar ao silêncio. Por isso eu costumava dizer que os vizinhos de lá eram os melhores do mundo, porque dormiam sem incomodar ninguém. Ao contrário, os defuntos mostravam que o silêncio em que estavam mergulhado prolongava a sua inexistência para sempre. Ensinavam que não havia nada mais vital que muita alegria e barulho. Com meus vizinhos do além, aprendi que eu não precisaria me preocupar em trabalhar menos ou buscar compensações nas poucas horas de descanso que me restavam, porque eu teria a eternidade para descansar.

Na realidade, assimilei dos mortos só aquilo que me convinha. Não consultei meus antigos vizinhos longamente sobre isso. Ouvi vozes que não passavam do eco da minha voz interior. Quando penso na morte de pessoas queridas é como se eu tivesse de cruzar aos prantos a minha velha rua para chegar a cenotáfios, a túmulos vazios. Não há nada mais que a lembrança de frases, olhares, gestos, conselhos, despedidas. A tentação da pieguice é tão grande que dou as costas ao vazio e retorno à vida. Porque é o que resta. Seria mentira e fraqueza se render às ocas sugestões da morte. Não acho que a morte tenha uma grande aula a ministrar. Ela parece mais espantosa que a vida, porque assim o queremos. Praticamos o autoengano como uma forma de autoajuda. E professamos nossa fé e nossa perplexidade no nada.

Eu a senti de olhos vendados, e a presenciei a olho nu. A morte surgiu para mim como aquela imagem medieval da “indesejada das gentes”, a velha senhora ceifadora de vidas, passando o gadanho e amontoando milênios e milênios de mortos atrás de si. Eu odeio a morte por tudo o que ela já fez e fará. Por isso, acho graça dos poetas latinos, dos padres, dos filósofos e de Montaigne que dizem em uníssono: “Memento mori! Lembre-se da morte, e assim aprenda a viver!” “Filosofar é aprender a morrer”, dizia Cícero. “Lembre-se da morte todos os dias”, aconselhava Montaigne.

A prédica é sempre igual: morra para viver, viva para morrer. As religiões postulam a nulidade deste mundo em nome da promessa de um paraíso depois da morte. As filosofias querem que sejamos seres-para-a-morte, como diria Martin Heidegger, criaturas cuja consciência da finitude nos traria a iluminação, a consciência perfeita do universo. Todos eles querem persuadir os mortais a se anular, a se render a um fato consumado, o de que a morte tem a última palavra. É ela que ri por último... na melhor das hipóteses, conduz de canoa os nossos corpos impotentes pelo rio Estige, como na tela de Platinir que está no museu do Prado, da luz à penumbra. A intenção dessa gente é nos transformar em beatos ou em cidadãos resignados. Mas todos eles disseram isso enquanto estavam vivos. Mortos, não voltaram para dizer mais nada. Leia +.

Luís Antônio Giron

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