17.11.09

Todas as lendas

Todas as lendas, mitos e romances existem, num sentido muito amplo, para pontuar as complicações da condição mais comum e mais desconcertante de todas: o fato de que não somos – incrivelmente, terrivelmente, não somos – a outra pessoa.

O embaraço de não sermos o outro é, naturalmente, o gatilho que desperta o conflito em todas as narrativas; é este embaraço que despertará sem distinção o amor e a rivalidade, o companheirismo e o desprezo, o egoísmo e a generosidade.

O que há de particular nesta história é que nela o protagonista abraça deliberadamente essa perplexidade. Deus cria o homem porque quer assumir o risco de não ser o outro; porque quer viver num universo inconcebível em que a inteireza se fragmenta e é preciso viver continuamente, impiedosamente, debaixo do peso e da mercê de um próximo.

E Deus não tarda a deparar-se com a severidade dessas complicações. O paradoxo está em que, precisamente por causa desse seu projeto de despir-se em glória e submeter-se ao olhar do outro, a divindade se encontra (agora que a transgressão humana mostrou-se espelho invertido da sua) mais sozinha do que jamais esteve.

“O homem tornou-se um de nós, conhecendo o bem e o mal. O que deve agora ser evitado a todo custo é que ele estenda a mão também para a árvore da vida, e coma, e viva eternamente”.

Deus, que criara o ser humano porque queria conhecer a condição de não estar só para sempre, entende logo que o amor terá de levá-lo a abrir mão, neste estágio das coisas, desse privilégio. “O que deve agora ser evitado a todo custo é que o homem viva eternamente”. Ao contrário da leitura usual que fazemos deste trecho, não é a fim de esquivar-se da competição que Deus quer evitar que o homem viva para sempre. Não é para punir o ser humano que Deus trabalha para mantê-lo sem acesso à eternidade. Seu propósito, seu embaraçosamente terno propósito, é proeteger o homem do terror existencial de que ele mesmo, Deus, não será poupado: o terror de conhecer o bem e o mal sem ser ainda capaz de amarrar um e soltar outro.

É o que enxergou com terrível clareza Elienai Cabral Júnior: a fim de nos poupar de perpertuarmos os ídolos que levantaremos na tentativa de nos curar dessa ambivalência essencial, Deus tem misericórdia de nós e nos mata.

Paulo Brabo, no A Bacia das Almas.

Um comentário:

Cerestino disse...

Paulo Brabo é fantástico. simplesmente fantástico!

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