15.11.09

A viagem da flor

Toda semana ela passava na floricultura e pedia para levar uma rosa. Preferia de cor champanhe ou vermelha. Ou cor de rosa. Ou a que tivesse as pétalas mais perfeitas, a do botão mais fechado, ou a mais cheirosa.

Dali em diante a flor viajaria algumas dezenas de quilômetros. O destino era um daqueles esguios vasos solitários e enfeitar a mesa do consultório. O local era distante, árido, e a clientela pouco usual.

Era um centro de emergências médicas dentro de uma área de risco, longe da região urbana, longe de tudo, à beira da rodovia. Um local propositadamente isolado e sem atrativos. Um local onde se trabalhava arduamente. Onde centenas - às vezes milhares - de homens laboravam como montadores de andaimes, soldadores, pedreiros, ajudantes, eletricistas, motoristas, encanadores. Homens que involuntariamente se tornavam brutos pelo excesso de sol, de chuva, das roupas pesadas, pelo excesso de equipamentos de segurança, pela distância das famílias. Mas precisavam estar lá.

Por isso, só uma flor era necessária. Renovada de dois em dois dias, a flor era um dos poucos elementos coloridos naquele mundo de terra e poeira. Era para ser um alento.

Um homem vinha machucado da área, tinha batido com a marreta nas mãos, por exemplo. Enquanto era atendido pela equipe médica, observava encantado aquela flor tão delicada, mas tão delicada, que achava que fosse de seda, tão perfeita e macia que era.Disfarçadamente, aproximava-se e tentava cheirar. Descobria - ‘ e não é que é mesmo?’ – que era flor de verdade. Enquanto isso a lesão era limpa, o corte suturado, o curativo feito.

Outros eram trazidos pela ambulância com alguma espécie de mal súbito: ‘dor no peito’, ‘pedra nos rins’, ‘pressão alta’. Enquanto esperavam o efeito da medicação ou a prescrição médica, olhavam o teto, as janelas, as paredes brancas. Até que descobriam a flor. Alguns comentavam, lembrando do jardim que deixaram em Minas, das famílias, esposas, namoradas, até de gente que já tinha partido. Os mais poéticos ensaiavam versos, contavam que sabiam os mistérios da jardinagem, confessavam que homem também gosta de flor.

Por alguns instantes se esqueciam de onde estavam, do capacete, do sol e dos calos das mãos. Eram somente homens saudosos ou subitamente apaixonados por quem tinham deixado lá fora. Aprendizes da delicadeza e da contemplação, homens finos e sensíveis. Pelo menos por alguns instantes.

Então dois dias se passavam e uma nova flor precisava ser trazida. Lá de novo na floricultura, o mesmo zelo e rigor em escolher a mais bela do dia. A flor que iria fazer a viagem.

Desta vez o vendedor não resistiu e perguntou porque somente uma flor era escolhida e levada. Não mais que uma. Às vezes duas. Porque ‘ a cliente vinha de dois em dois dias, e não levava logo um buquê? ‘ Ela explicou sobre o esguio vaso solitário, a mesa, o consultório, os capacetes, o sol, a saudade dos homens brutos. Ela contou como a flor possuía a mágica de trazer à tona o melhor de cada um. A flor se tornara tão necessária naquele lugar, e por isso precisava ser a mais linda, a mais perfeita e a mais cheirosa.

O vendedor se comoveu. Contou que por muitos anos havia sido pedreiro, operário, homem invisível, daqueles que ninguém repara nem cumprimenta na rua. Que nunca ninguém tinha trazido uma flor para ele. O vendedor chorou discretamente. Voltou e fez novo embrulho, desta vez com muitas flores, todas bonitas, perfeitas e cheirosas; estendendo o buquê, disse que ‘era um presente dele’ para a cliente.

O que ele não disse – mas quis dizer – é que as flores não eram só para a cliente, mas também para os homens. Quem sabe para si mesmo? Ele entendeu que a flor era mais que enfeite, era missão; mais que perfume, era memória, analgésico e cura.

Ele entendeu tudo e se sentiu-se cheio de dignidade e honra. E despediu-se da cliente e das flores, que agora podiam fazer sua viagem.

Helena Beatriz Pacitti

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