SEMPRE GOSTEI do fim do mundo. Não falo da Amazônia, não falo do Alasca. Falo do fim do mundo em minha casa. Ou na sala de cinema, onde o fim do mundo normalmente acontece.
É um fetiche: um filme em que a humanidade é devastada por um vírus/um extraterrestre/um cometa/ uma guerra/um desastre climatérico/uma profecia primitiva (ah, escolham vocês) e eu estou sentado na primeira fila, como uma criança fascinada pelo Papai Noel.
Mais ainda: em privado, tenho uma coleção generosa de DVDs sobre o dito cujo -o apocalipse, não o Papai Noel. Sou, no fundo, como certos cavalheiros vitorianos, que colecionavam pornografia francesa em vãos de escada.
No meu caso, depois da estante das comédias, dos westerns, dos musicais e dos solenes "filmes de autor", há uma parede falsa que se abre para um mundo mágico: o mundo onde estaremos todos exterminados amanhã de manhã.
Claro que existe uma diferença entre mim e a restante espécie. Os meus apocalipses são no cinema e duram, no máximo, duas horas. Para a restante espécie, os apocalipses são na vida real.
Nesta virada do ano, por exemplo, não faltaram textos na imprensa a lembrar o fato: desde 2000 que vivemos a fantasiar e a tremer com a ameaça da nossa própria aniquilação coletiva. O pesadelo começou logo em finais de 1999, como lembram Denis Dutton (no "New York Times") ou Daniel Kalder (na "Spectator"): esse foi o momento em que um vírus informático de nome impronunciável (Y2K) prometia bloquear os computadores e atirar o planeta de volta para a Idade da Pedra.
Não aconteceu nada: falhas mínimas, risíveis, depois de bilhões de dólares dos governos a preparar os seus sistemas informáticos para o pior. Quando a Terra entrou em 2000, a Terra continuou o seu caminho. Suspiros de alívio.
Por pouco tempo: se um vírus informático não devastava a humanidade, os animais talvez o fizessem. Vieram as vacas. De preferência, loucas. E prontas para enlouquecer os comedores de carne com doença neurológica e genocida. Foi a ruína: dos produtores de carne, não dos comedores dela.
E quando não eram as vacas, eram as aves que espirravam na Ásia e constipavam o Ocidente. Ou então os porcos, com suas gripes pandêmicas e destrutivas. A última aconteceu em 2009. Ou, para sermos rigorosos, não aconteceu. Estranhamente, as gripes aviárias e suínas desapareceram como apareceram: sem ninguém saber como, para onde, por quê.
Um apocalipse, porém, continua a pairar sobre as nossas cabeças amedrontadas: o aquecimento global.
Tem uma certa piada escrever isso quando, em Lisboa, nesse preciso momento, olho pela janela e está um frio digno de esquimós. Mas esta evidência empírica, juntamente com a evidência empírica de que as temperaturas estabilizaram desde inícios do século 21, não arrefeceu o único aquecimento que existe: o aquecimento mental dos catastrofistas.
Depois das vacas, das aves e dos porcos, o apocalipse, afinal, vem de cima. Que poético! Que providencial! Que apropriado! Resta perguntar: como se explicam os nossos recorrentes namoros com o apocalipse?
Sim, a herança judaico-cristã pode ter um papel decisivo na nossa concepção escatológica da história: na crença de um tempo final em que os seres humanos serão punidos por pecados seculares. Mas o namoro com o apocalipse talvez tenha uma explicação mais prosaica: o tédio.
No século 20, havia motivos sérios para acreditar na ameaça apocalítica. Duas guerras mundiais não ajudaram o otimismo da espécie humana; e a Guerra Fria, com sua destruição mútua assegurada através de armamento nuclear, permitia todos os pesadelos lúgubres.
Mas, hoje, no meio da afluência ocidental, não estaremos a exagerar um bocadinho?
Curiosamente, é a afluência que leva os homens a procurar alguma adrenalina. As necessidades básicas estão suprimidas para a maioria do rebanho. E, com a desagregação da União Soviética, os horrores da guerra são hoje um cenário distante, que ocupa o noticiário da noite.
Mesmo o terrorismo, que continua a pender sobre a cabeça dos ocidentais, não promete acabar com tudo. Promete acabar com algumas coisas. É pouco. E nós queremos mais. Queremos abraçar o apocalipse, no cinema ou na realidade, porque existe um tédio de morte a mendigar uma excitação de morte.
João Pereira Coutinho, na Folha de S. Paulo.
16.1.10
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