23.1.10

Meu anjo está comendo

Arte de Marc Chagall

Quando estou triste, enfrento um impasse: não sei mais por quem estou chorando. Perco a página, a música. Perco onde estava, o endereço da frase. Não localizo o que procurava. Tudo geminado. Igual. Como um bairro que já foi favela. Casas grudadas, com a mesma pintura e inclinação dos telhados.

A mão não acende mais suas unhas. A ausência de sentido faz com que o passado seja preguiçoso. Puxo o que é mais recente, o que aconteceu agora, como um gole de café e um texto. E nada me serve.

Não me interesso pelas roupas que uso, pela próxima refeição, pelos boletos bancários. Meu luxo é o silêncio. O desejo foi despejado. Não existe sequer o bocejo, a dormência vem desacompanhada.

Talvez não morra porque acredito que não serei lembrado. Queria ser lembrado o suficiente para vingar todas as vezes em que esqueci de mim. Não haverá alguém me preservando, insistindo, fazendo luto, batendo nos meus pulsos. O luto nunca vai durar mais do que uma morte. É um obituário, uma missa, um mal-estar, uma saudade, uma nostalgia e uma pedra.

Agarro-me na insuficiência respiratória como uma rédea. Até onde ela pode ir? Até onde posso soluçar? O desespero é uma cadeia exata de movimentos, uma máquina fabulosa de nervos saltando e contrações provocando as dobras. Não seria capaz de repetir numa aula de ginástica. Contorço os ombros para aumentar o desconforto.

Sofrer já é uma atividade física: o pulmão assobia. O mesmo chiado de praça. O barulho das correntes do balanço segue sem mim, sem ninguém balançando. Um momento; e o corpo não está mais lá, mas seu impulso.

Ao falar, não me escuto. Simplesmente porque não me reconheço. O timbre fica infantil quando choro. Nunca vi um adulto chorar como adulto.

Encontro uma esquisita felicidade na fraqueza. A desistência é parecida com a esperança. Posso levar uma como se fosse a outra e perceber a confusão tarde demais. E não há como reclamar e devolver uma desistência usada.

O instrutor do desespero repara que parei um pouco, tomei ar e pede que eu prossiga com os exercícios. Pode ser mais fraco, Fabrício, vai! Levante mais lembranças, grite a cada golpe, apague lentamente a vontade de viver. Os cílios ainda estão secos! Vai, Fabrício, pode sofrer mais! Somente isso que consegue? Cadê a renúncia? Cadê o sacrifício?

Hoje eu não me sinto feio, eu me sinto triste. Não dá para ser os dois ao mesmo tempo.

Nem me ofender tem mais graça. Quase estou rindo dentro do sofrimento. Dentro da mais absoluta dor, há uma risada. Pressinto. Há uma gargalhada sonora, límpida. Um riso que deve trazer câimbras. Difícil é chegar lá sem enlouquecer. Não conheço ninguém que voltou para contar a piada.

Há uma gargalhada no fundo, lembra um zumbido de abelhas, ou o chiado do balanço, ou o pulmão baqueando. Estou longe. Como chegar mais perto? Como?

Uma carta tem sempre um nome para começar, eu tenho apenas meu nome para terminá-la.

Fabrício Carpinejar

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