De repente, um silêncio. Um suspiro apressado e a pergunta atravessada. – Mãe, por que Deus não fala comigo? A mãe, em socorro da piedade, afirma o imponderável. – Claro que fala, Deus fala com todos, Thales. É só prestar atenção. Um novo silêncio. A cabeça maneada em aflição. – Não fala, não. Quer ver? O silêncio novamente, proposital. – Ta vendo? Não disse? Comigo não fala!

Inverno, frio e banho apressado. A mãe protege a filha embrulhando-a no roupãozinho. Vai à frente, separa a roupa apropriada, mas a menina é distraída. Estressada, o pedido da mãe vira ordem. A ordem, ameaça. Vem agora, senão… Com cara de aprontação, Gabriela chega à porta. Para. Dedo indicador na bochecha. Olhos voltados para cima. – Sim. Tá bom. Como se falasse com alguém. A misteriosa conversa termina e a menina deixa a mãe acabar o serviço. A pergunta é inevitável. – Você estava falando com quem, Bibi? Prontamente: – Com Deus, mãe. E o que foi que Ele disse? Insiste a mãe. – Ele disse que não gosta de mãe que briga com a filhinha! Surpreende.

Ambos, além de meus filhos, são meus profetas. Os melhores. Daqueles que avisam que o rei está nu. O Thales, com três anos, devia vir tentando ouvir essa voz que todo mundo diz que ouve. A Gabriela, na época também com três, foi um pouco além. Descobriu exatamente de onde vinha a voz. Profeta bom é aquele que desmistifica a vida e nos devolve ao chão da realidade.

Um Deus que cria seres tão frágeis, tão mutantes, tão mortais não deveria pretender uma relação baseada em afirmações tão absolutas quanto querem os religiosos. A pretensão religiosa de certeza absoluta sobre o que pensa a respeito de Deus apenas esconde o desespero pela imprecisão da vida. Congelamos nossas idéias sobre o divino debaixo da revelação bíblica como se ela não fosse feita também de palavras. Como se uma outra substância a constituísse, um tipo de superpalavras, um hipervocabulário que está imune à nossa humanidade.

João, para desespero de alguns raivosos fundamentalistas, afirma que ninguém jamais viu a Deus e localiza no próximo o rosto do Altíssimo. Jesus, na parábola do Julgamento das Nações, coloca na face dos mais sofridos o seu rosto. Fazer a Jesus é fazer aos que tem fome e sede, estão nus, presos e sem-terra (condenados a serem sempre estrangeiros no nosso mundo de posses). Mas um Deus que se revela no próximo é tão incerto que reivindica toda a minha sensibilidade. Um Deus que se mostra no rosto mais sofrido não quer me dar dogmas, mas compaixão.

As palavras que não passam não são linguagem, são afetos e relações, é socorro aos aflitos e amizade. Nossas precárias palavras, cujos sentidos nos escapam como água entre os dedos, nunca param de passar. Ouvir a voz de Deus não é ouvir um comando. É sentir o irmão. O Verbo Divino que revelou Deus foi um “homem experimentado em dores”, alguém que até desprezaríamos, completa Isaías. Foi Deus se compadecendo entre nós. Por isso, acredito, Jesus desiste de firmar a Verdade em frases e o faz em sua existência amorosa. Sua afirmação não foi ‘o que eu disse é o caminho, a verdade e a vida’, mas quem eu sou.

A grande verdade do cristianismo só começa com letra maiúscula porque é nome próprio.

Elienai Cabral Jr.