27.3.10

O passado do perfume

Brinquedo de verdade unicamente no aniversário e nas datas festivas.

Extravasava minha infância com brinquedos de mentira. Na época, criança significava o que havia de mais avançado em lixo reciclável. Acolhia produtos, potes e latas para criar cidades em miniatura e povoar minha imaginação. Tudo o que acabava para os pais ressuscitava em minhas mãos. Não foi uma vez que a mãe me entregou uma embalagem de sabonete: olha que bonito, quer ficar?

Eu ficava e embrulhava o olfato. Gostava de receber os frascos dos perfumes, minha oferenda predileta. Ainda mais que vinha o refil para borrifar, potente como uma pistola de piscina. Eu chegava a gastar o perfume paterno no ar para logo ganhar o recipiente. Apressava seu uso. Não existia banheiro mais cheiroso do que o nosso.

Sobrava um resto de fragrância, cerca de um milímetro dos cinquenta iniciais, justa a medida que o canudo não alcançava. Eu me encarregava de misturar com xampu e água. E passava no pescoço e nos pulsos para ir à escola. Confiava que tinha restaurado o conteúdo. Não me constrangia de ser só vapor. Transbordava a seco. Forçava as narinas a descobrir o espírito do vidro, a fingir que nada mudou desde a compra.

Mantinha uma caixa especial com os perfumes que nunca terminavam. Quando atingia a seca, recarregava da torneira e voltava a fingir pólen. Meu quarto era um free shop mais barato do mundo.

Acho que sou o igual na vida pessoal. Um pouco de cheiro e trato de encher o resto. Conservei a herança. Sofro muito diante de posturas secas e anti-românticas. Armo os olhos a surpreender e ser surpreendido e depois sereno as frustrações.

Deliro que sou desnecessário, talvez seja. Incomoda-me a minha gula, o nível de exigência, já cogito que devo ser louco, daqueles perfis inclassificáveis, em que a carreira não é mais importante do que o namoro. Posso aguentar a semana inteira trabalhando, desde que partilhe um final de semana de juras mútuas. Não pretendo descansar, e sim trabalhar a delicadeza. Se fosse para estar sozinho, não pagava a pensão e terminava preso.

O que me comove são os programas em comum: assuntar coladinho, despistando os problemas e repetindo as declarações óbvias por todo sábado e domingo. Sou um retardado afetivo, que me diga que me ama sem parar. Pelo menos, não conheci um retardado acabrunhado.

Não vejo maior arrebatamento do que alguém perguntando o que desejo fazer. Curtir a sequência de agrados até dormir com profunda nostalgia e levantar com desgosto diante do alarme. Quem não acorda ranzinza na segunda-feira não foi feliz no final de semana.

Mas o relacionamento está em baixa. Permitimos a companhia desde que nosso par não invente de existir e atrapalhar. Somos capazes de nos dedicar mais aos amigos do que à própria mulher. Nem percebemos, são distrações imaginárias. Se surge uma fresta de duas horas no serviço, não ventilamos a possibilidade de telefonar para a namorada e convidá-la repentinamente ao cinema ou a um motel. Geramos tarefas nas tarefas para justificar o tempo tomado. A indiferença é involuntária, até moderna, charmosa, atraente. Tenho consciência do meu perecimento, exalo antiguidade, ando curvado sobre a vaidade como um animal pré-histórico. O individualismo é apelidado de independência e qualquer um que ameaçá-lo será comparado a Fidel. Ninguém mais confessa que se vestiu para o outro, por exemplo. A gente diz que se veste para nos agradar e pronto, que se dane o mundo.

Eu acredito sinceramente que, ao morrer, não terá sido em vão se minha mulher confessar que não houve quem a divertisse tanto. É mais uma crença idiota.

Meu perfume acaba e abasteço o pote novamente. Só eu sei que é água. Mesmo dentro do relacionamento, grande parte do amor permanece platônico.

Fabrício Carpinejar
arte: Magritte

2 comentários:

Valdecy Alves disse...

Sem dúvida que sempre que seguimos um blog ou somos seguidos, formamos uma verdadeira teia, capaz de ter um alcance quantitativo e qualitativo para matérias formativas e informativas, que mídia alguma consegue ter. POR ISSO PARABÉNS PELO BLOG.

Doutra feita, CONVIDO VOCÊ, seus seguidores e quem você segue, para lerem matéria sobre o espetáculo SAGRADO E PROFANO, que ocorrerá na cidade de Senador Pompeu, interior do Ceará, no pequeno Distrito de Engenheiro José Lopes. Experiência artística que mobiliza toda a população, que além de encenar a Paixão de Cristo ainda tem os caretas, que há cerca de 70 anos, saem pelas ruas. Experiência artística, social, política, folclórica, econômica..... que merece ser relatada, imitada e, sendo possível, vista e visitada ao vivo. Boa leitura em:

www.valdecyalves.blogspot.com

Jorge Jansen disse...

"Quem não acorda ranzinza na segunda-feira não foi feliz no final de semana."
Muito bacana o texto. Cheguei a sentir dos "cheiros" dos meus dias e as desesperanças de minhas horas de ócio.

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