16.6.07

Cadê a casca de amendoim?

Não sei se isso também ocorre no Maracanã, no Morumbi ou no Olímpico, mas minhas mãos estão mais surdas. No estádio Beira-Rio, está proibida a venda de amendoim com casca, para evitar a sujeira. Pode soar ridículo alguém reclamar do veto do amendoim com casca, mas eu protesto. É como perder a sonoplastia do jogo, o som das minhas batidas cardíacas. Os jogos ficaram silenciosos. Mudos.

A casca de amendoim era mais importante do que o amendoim. A casca de amendoim era meu radinho de pilha. Desde a minha infância, torcia quebrando sua couraça com os dedos, estalando seus aquedutos à procura de suas pequenas jóias escuras.

A casca de amendoim me livrou de roer as unhas, me livrou de infartos, me livrou da violência reprimida ao juiz. Eu colocava minha força na casca de amendoim. Ela me tranqüilizava. A casca de amendoim é terapêutica. Ela me consolava com sua conversa de botões. Na arquibancada, costurava cascas de amendoim. A casca de amendoim é lírica.

Quem censurou a casca de amendoim, não teve mãe rezando terço de madrugada. A casca de amendoim é terço de homem, meu terço das ruínas.

Quem censurou a casca de amendoim não suportou frio no estádio e não foi obrigado a desviar a atenção dos pés gelados e úmidos para as mãos trabalhando a britadeira dos grãos. A casca de amendoim é meu cachecol de relâmpagos.

Quem censurou a casca de amendoim não entende o tamanho da ansiedade do intervalo entre o primeiro e o segundo tempo. Não tem filhos para repassar a arte de quebrar amendoim durante o ano. É uma arte sucessória, para que a criança não passe vergonha ao enfrentar as nozes no Natal.

Quem censurou a casca de amendoim não entende a gravidade de uma derrota no domingo para regressar ao trabalho na segunda-feira. É necessário amassar o pão antes que o Diabo o faça.

Não tenho ostras para irromper, não tenho mariscos, nem mar a me levar para longe. Eu só tinha as cascas de amendoim de cardume para espreguiçar os braços e arremessar o fôlego.

Agora os vendedores me oferecem o amendoim pelado, o amendoim tosquiado, sem a vida de sua terra. O amendoim solitário, sem o condomínio das pedras. O amendoim sem personalidade, sem forma. Como um time sem camisa. O amendoim sem casca é um amor sem os defeitos, é um amor sem a rotina, é um amor sem as brigas ao entardecer, um amor sem ciúme, um amor sem reconciliação.

Não quero, quero a casca de amendoim de volta. Fazer um tapete sobre o meu canto, um tapete de ruídos em meu colo. Um tapete para não me perder quando vou buscar cerveja. Um tapete que formei em décadas de minha vida num degrau de cimento ou numa cadeira de ferro. Um tapete para fixar meu lugar, já que o coração é grande e o mundo mais vasto ainda.

Fabrício Carpinejar, em seu blog.
arte de Basquiat

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