16.6.07

Mar de Cristal

Talvez eu, mineiro de quatro costados, descenda dos Christo, ciganos que aterrorizaram a região de Ribeirão Preto em tempos antanhos e que, não duvido, guardam parentesco com o artista plástico de origem búlgara de mesmo nome, famoso por embrulhar monumentos como o Reichstag, o parlamento alemão.

Digo-o por ser um viajor inveterado. Não que me sinta atraído por terras estranhas ou estrangeiras. Bem observava meu pai ao afirmar que viajo mas não passeio. Sim, no íntimo acalento o sonho de habitar uma cartuxa, cultivar em torno da ermida uma horta para consumo próprio e não me ocupar senão de orar e escrever.

A vida de pregador, a cuja Ordem religiosa pertenço, leva-me aos quatro cantos do mundo. O que me intriga, pois não tenho nada especial a dizer. Não detenho títulos acadêmicos, nem fiz nenhuma descoberta ou teoria que mereça propaganda. Por que tantos convites, em especial da Europa, onde sobram mentes muito mais cultas e iluminadas do que a minha? Ninguém é juiz de si mesmo, ensinam o Evangelho e também Marx que, como bom judeu, herdou influências bíblicas. Se me é dado direito a uma opinião, direi que sou convidado, não pelo que teria a dizer, mas por ser um otimista inveterado.

Eis o que esperam de mim, com perdão da redundância: esperança. Para a cultura predominante na Europa ocidental, confortavelmente assentada nos êxitos econômicos da União Européia, o presente é o futuro. Resta preservá-lo. De que é feito esse presente? De consumismo. Produtos, objetos dos sonhos de gerações passadas, encontram-se, agora , ao alcance da maioria, como carros. Na Espanha há 36,9 milhões de habitantes e 46 milhões de telefones celulares.

Esse bem-estar atrai imigrantes pobres que a Europa trata de afugentar. Em fevereiro, a Agência Européia de Controle de Fronteiras (Frontex) passou a policiar oito aeroportos europeus para vigiar o fluxo de imigrantes latino-americanos. Estão sob controle os aeroportos de Madri, Barcelona, Lisboa, Paris, Amsterdã, Milão, Roma e Frankfurt.

Apegado à sua ordem e progresso - que para nós é apenas um lema na bandeira – o europeu ocidental se pergunta: para quê? É isto a vida, mera reprodução biológica em condições excelentes de consumo e bem-estar?

Na falta de sentido, os europeus investem na satisfação dos sentidos. Ingerem mais comida e bebida e, também, mais drogas. Alguns poucos, como meus anfitriões, se indagam: até quando viveremos nesse mundo de opulência (gastam, por ano, o equivalente a 15 bilhões de reais apenas com sorvete!) cercados por um mundo de tanta pobreza?

Vou mundo afora semeando esperança, partilhando minha fé abraâmica no ser humano. Sim, sou menos crédulo agora que já me foi dado dispor de 2/3 do tempo médio de vida humana. Não mais espero a coincidência entre o meu tempo pessoal e o tempo histórico. Já não creio no homem e na mulher novos, frutos do casamento de Teresa de Ávila com Ernesto Che Guevara. Todos nós, humanos, temos defeito de fabricação, que a Bíblia chama de pecado original. Nem por isso deixo de acreditar que, um dia, haveremos de criar uma sociedade cujas instituições inibam nossas tendências nefastas e perversas.

Nisto reside a minha esperança: de que o novo não decorre de um ilusório sentimentalismo que nos induziria a amar o próximo como a si mesmo. A solidariedade virá como exigência política; caso contrário estará em risco a vida na Terra. Não é o asteróide Apofis, que se aproximará da Terra em 2029, que nos ameaça. É o nosso modelo concentrador de renda, devastador da natureza e excludente dos direitos humanos. Então muitos compreenderão que o socialismo é a expressão política do amor.

Tudo isso me veio à cabeça ao aguardar o metrô numa estação de Madri, cujo nome me soa literário: Mar de Cristal. Belo título para um romance. Como não hei de escrevê-lo, utilizo-o para batizar esta crônica.

Frei Betto é escritor, autor de Sinal de contradição (Espaço e Tempo), entre outros livros.

5 comentários:

Anônimo disse...

Também acho que Marx foi influenciado pela Bíblia. Jesus já havia repartido os pães e os peixes, socializou a comida. Não há nada de mais satânico que o capitalismo, que proporciona torneiras de ouro a uns e fome degradante à maioria. O capitalismo, que instiga a "competição", o ego nas alturas, o corpo esquálido, malhado, bronzeado, carne humana como em açougue, objetos inúteis para ser comprados (eu mesma compro e às vezes me digo: mas pra que fui comprar isso?). Recebo muitos scraps pornográficos no Orkut. Hoje de manhã não agüentei, e respondi. Falei à moça que ela não existia para aquilo. Disse que ela merecia mais, que Deus a havia criado para ser amada, e não prostituída. Disse que ela tinha valor, mas não financeiro, disse que tinha valor como ser humano, e que era capaz de ter uma vida melhor, e que eu torcia por ela. Nem sei se por trás daquela foto, daquele perfil, há realmente uma mulher! Há uma poesia de Fernando Pessoa que diz: "O amor é que é essecial / o sexo é só um acidente / o homem é uma carne inteligente / embora às vezes doente" Nada é saudável no capitalismo. O amor e a relação sexual frutos do afeto sincero e do compromisso viram pornografia; o trabalho vira escravagismo; as relações se degradam. Não acredito que em Paris, onde morei, os jovens drogados, esquálidos, imbecilizados, alcoolizados, tristes, tantos, que via pelas ruas, e nos metrôs, e nos cafés, não creio que esses jovens não tenham dentro de si a grande frustração e a culpa por não poder estender todos os benefícios que recebem ao resto do mundo, que agoniza, e por não lutar realmente para que isso ocorra. Os ricos não vêem? Quando agradeço a Deus pelo alimento, pela casa, pelo emprego, às vezes me sinto tão estúpida. E os outros? É como diz a música do Plebe Rude: "Não é nossa culpa / nascemos já com a bênção / mas isso não é desculpa / pela má distribuição / com tanta riqueza por aí onde é que está / cadê sua fração (...) Até quando esperar / até me ajoelhar / esperando a ajuda de Deus".

Anônimo disse...

Poesia do amor para o mundo

O amor que sempre me faltou
Foi o amor da humanidade,
Universal, fraternal,
Esquecido, fuzilado, assassinado, faminto, preso, bombardeado, calado,
Só.
Esse amor que me arde
Faz homens confiarem em homens,
Faz a terra ser dividida,
O mundo habitável,
Torna ódio em perdão,
Realidade em justiça.

Sonhei, esperando por um pouco desse amor,
Incondicional, real, contagiante,
Que se esquecesse de egoísmos e violências.

Esperei ver no poder
Algo milagroso que o fizesse renunciar.
Mas vejo homens matando homens
Por dinheiro, poder, estupidez,
Vejo o pão ser negado a crianças,
Vítimas de tantos massacres,
E vejo não haver descanso,
Não haver perdão.

E esse amor vejo morrer a toda hora,
Nas prisões, nas instituições,
Na miséria, na guerra,
No racionalismo, nas leis,
Na fome, na solidão,
No egoísmo, na doença,
Nos homens.
Na indiferença.
Em silêncio.

(1900 e alguma coisa, não me lembro do ano em que escrevi esse texto)

Anônimo disse...

Só pra esclarecer: quando entrei no perfil da jovem que me mandava mensagem pornográfica pelo orkut, estava p. da vida, ia mandar uma mensagem falando poucas e boas pra ela, ou seja lá quem fosse que estivesse por trás daquele perfil. Não sou nenhuma Madre Teresa de Calcutá. Sou geniosa, às vezes tenho paciência, mas às vezes meu pavio é muito curto. Mas também me emociono com facilidade. Então, quando e entrei e vi o tanto de recados como o que pensei em mandar, xingando, insultando, reclamando... Aí me emocionei, e escrevi outra coisa.

Também tenho enorme dificuladde para perdoar. Quando me machucam, fundo, não sei o que fazer. Talvez seja esse meu espinho na carne. Mas quero, quero muito, pois o perdão liberta. Não tenho ódio do mundo, não. Mas gurado um sentimento de dor em relação a algumas pessoas, sim.

É isso, esclarecimento aos leitores do blog, como a querida Luciana, que me elogiou ontem. Não sou santa.

luciana disse...

O que dizer de tudo isso: triste chegando ser agonizante mesmo. Vemos a humanidade perdida, nós querendo salvar alguns e desses alguns nem todos aproveitando a oportunidade. E isso nos desespera um pouco!
Mas definitivamente não podemos deixar que tudo isso tire a nossa paz e alegria.Não devemos nos tornar pessoas carregadas com todo esse jugo que a vida quer nos impor a todo instante. O fardo de jesus existe mas é leve é suportável.
Passei por muitas coisas, como travar uma disputa de corda eu puxando de um lado e a outra pessoa querida puxando pra outra pra morte até não aguentar mais e ter que decidir, ou soltava ou ia junto pra morte!Foi horrível mas escolhi por mim e pelas minhas filhas.E a outra pessoa querida não quís saber de ajuda nem minha nem da igreja e nem de ninguém e se foi com as drogas.
Quando se passa por três fatidicos anos assim, pelo menos pra mim ,nada mais é tão difícil, nada mais é tão triste,nada mais é perda ,apenas se foi, nada mais é difícil de perdoar. Sou grata a Deus por ter conservado minha vida e a das minhas filhas , por estarmos bem e felizes.
Passei a dar mais valor na vida, pois é um dom de Deus.A eternidade já começou, quero ir pro céu sim, mas enquanto estivér aqui, quero por um pouco de céu na vida das pessoas que me rodeiam (Como díz o Pavarini).
Maya mui querida, eu sei que vc não é "santa"porque vc não gosta de piadas com os argentinos heheh
mas mesmo assim admiro o que escreve porque revelam sinceridade em suas palavras e escrever outra coisa só para agradar seria ser desonesta com vc mesma.
Vc vai fundo no que díz,(mesmo que eu não concorde em algumas coisas) e por isso tem minha admiração!
Também não me tornei santa com tudo que passei, mas enxergo a vida de um outro jeito.

Anônimo disse...

Cara Luciana, imagino o quanto você deve ter sofrido. Algumas coisas na vida são inexplicáveis. Também não entendo muita coisa que já aconteceu comigo. Mas é assim, as coisas simplesmente acontecem.

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