A pós-modernidade não nega a modernidade; antes, celebra suas conquistas, como o positivismo entranhado nas ciências, a razão tecnocientífica a pontificar sobre a intuição e a inteligência, o triunfo do capitalismo em suas versões neoliberal e, agora, neofascista, contrapondo, por via da guerra, o fundamentalismo econômico – o capital como valor supremo – ao fundamentalismo religioso.
Frente ao darwinismo socioeconômico, a cultura mergulha em profunda crise. Os valores monetários do mercado se sobrepõem aos valores morais da ética. Os grandes relatos se calam, a história como processo se desacelera, as ideologias críticas agonizam. O futuro recua perante o imperativo de perenização do presente. Tudo se congela nessa idéia absurda de que a vida é ‘aqui e agora’. A velhice é encarada como doença e a morte como abominação. A felicidade é reduzida à soma de prazeres e os bens finitos mais cobiçados que os infinitos.
Sabe-se o que não se quer, não o que se quer. As utopias ruíram com o Muro de Berlim. Maio de 68 não logrou expandir-se além das fronteiras do corpo liberto do peso da culpa. Os projetos revolucionários quedaram como a estampa do Che pregada na parede ou reproduzida na camiseta. “E há tempos nem os santos têm ao certo / a medida da maldade. / Há tempos são os jovens que adoecem. / Há tempos o encanto está ausente. / E há ferrugem nos sorrisos. / E só o acaso estende os braços / a quem procura abrigo e proteção,“ canta Renato Russo.
Hegel nos ensinou a pensar a realidade e seu discípulo, Marx, a transformá-la. Esqueceram-se do ensinamento bíblico de que é preciso mudar o coração de pedra em coração de carne. O novo, na ciência e na técnica, não fez novo o coração humano, agora assolado pelo sentimento de impotência, de fatalismo, de cinismo. É a cultura do grande vazio respirada pelos jovens de hoje. Caminham de Prometeu a Narciso e, no meio do percurso, deixam à margem o heroísmo de Sísifo. Não lhes importa que a pedra role ladeira abaixo, importa é desfrutar da vida.
Capitulados diante das exigências de construir o novo, olvidados Hegel e Marx, as mudanças históricas sonhadas por minha geração de 68 agora se resumem ao corpo, à moda, aos gostos e caprichos individuais. Na prateleira, a literatura libertária é substituída por esoterismo, astrologia e auto-ajuda. Já que a sociedade é imutável, há que desfrutá-la. E já que não se pode mudar o mundo, ao menos há que encontrar terapias literárias que sirvam de vacina contra um profundo sentimento de frustração e derrota.
Na ânsia de eternizar o presente, buscam-se artifícios que prolonguem a vida: malhação, dietas, vitaminas, cirurgias estéticas etc. Urge manter-se eternamente jovem. Velhice, rugas, obesidade, cabelos brancos, músculos flácidos, perda de vigor juvenil e beleza física, eis os fantasmas que amedrontam a alma lúdica, luxuriosa, de quem não sabe o rumo a imprimir à existência. Como apregoa o Manifesto Hedonista (E. Guisan 1990), “o gozo é o alfa e o ômega, o princípio e o fim”.
Privatiza-se o existir, encerra-se num individualismo que se gaba de sua indiferença frente aos dramas alheios, e predomina a insensibilidade às questões coletivas. A ética cede lugar à estética. A política é encarada com nojo e, a vida, como um videoclipe anabolizado por dinheiro, fama e beleza.
Surge a primeira geração sem culpa, despolitizada de compromissos, repleta de jovens entediados, céticos, insatisfeitos, fragmentados. Geração de reduzida capacidade de maravilhar-se, entusiasmar-se, comprometer-se. Uma geração desencantada: "Vivo en el número siete, / calle Melancolia, / quiero mudarme hace años / al barrio de la alegria. / Pero siempre que lo intento, / ha salido ya el tranvía / y en la escalera me siento, / a silbar mi melodía" (J.Sabina).
Agora cada um tem a sua verdade e ninguém se incomoda com a verdade do outro. Nem se deixa questionar por ela. O diálogo face a face é descartado em favor do diálogo virtual via internet, onde cada parceiro pode fingir o que não é e disfarçar sua baixa auto-estima. Nas relações pessoais, inverte-se o itinerário de minha geração, que ia do amor ao sexo; agora, vai-se do sexo ao sexo, na esperança de que, súbito, desponte o milagre do amor.
Nesse nebuloso mundo pós-moderno, a visão é obscurecida. Perde-se a dimensão da floresta, avista-se apenas uma ou outra árvore. Assim, fica-se indignado com a violência urbana e clama-se pela redução da maioridade penal e pela pena de morte. Quem se indigna com a violência estrutural de uma nação que condena milhões de jovens à desescolarização precoce e ao desemprego?
Vale de (mau) exemplo a Justiça de Bush, que condenou a 100 anos de prisão o soldado que, no Iraque, estuprou e matou uma jovem de 14 anos. Enquanto isso, a chuva de bombas made in USA tira a vida de 700 mil iraquianos, sem distinguir inocentes, crianças e idosos. Quem haverá de pagar por tamanha atrocidade?
Frei Betto é escritor, autor de Treze contos diabólicos e um angélico (Planeta), entre outros livros.
9.6.07
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4 comentários:
ô que lindo... ô Frei Betto, com todo o respeito, eu te amo.
Escrevi essa poesia no dia 19 de novembro de 1991. Pensando sobre isso, sobre essa estupidez coletiva, nascisista.
Essa crianças
se perdem
psicodelicamente
na noite ultra-som
sem o sonho
de uma utopia.
Pobres!
Essa poesia eu escrevi no dia 7 de novembro de 1995. Vi uma reportagem sobre crianças que trabalhavam em carvoarias. Chorei muito, porque achei aquilo um abuso, aquelas crianças sem escola, sem infância.
Crianças fazendo (-se) carvão,
Tão sujas confundem-se,
São pedaços de madeira queimada
Queimados os olhos a boca o pulmão
Ardendo na fumaça escura as crianças e o carvão,
Tocos de vida sem vida,
Sem sonho sem futuro
sem infância sem nada
E os fornos,
Senzalas de tijolos,
Moldando tristes seres pretos e desesperançados,
Retratos de poeira e inocência
Nonada do medo.
****
Frei betto, algumas coisas, algumas pessoas, alguns textos, alguns fatos despertam em mim o que há de mais sagrado.
Oração do Campo
Quantos caminhos me levam,
Nem sei mais por onde vou,
Moço, se antes levava a vida,
Hoje vejo, foi ela quem me levou.
Os anos passam,
E eu olho o que ficou na estrada,
Vivendo de passado tenho medo do futuro,
Foi tanta idéia perdida,
E hoje eu não sonho nada.
Mas a estrada é longa e o caminho, estreito,
Penso no que poderia ter sido, no que poderia ter feito...
Seguindo só, vivo neste mundo tenebroso,
Lugar de dor, ruim e imperfeito.
Moço, o senhor que sofreu nesta terra,
O senhor, inocente que era,
Sentiu dor, solidão, tristeza e traição,
Sentiu as garras da fera apunhalando o coração,
O senhor, que por mim pediu perdão,
Chorando de medo e de abandono
Baixou a cabeça com a humilhação
E sentiu as lágrimas caindo, suou suor de sangue, viu seus amigos indo...
Ô moço, menino Jesus,
Olha um pouco aqui também,
Tenho sofrido com minha cruz, Tenho chorado sem ter ninguém.
09/03/2000
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