28.7.07

Reticências

A apresentação foi impecável. A nova solista mandou bem e a galera do coral estava feliz com o supertalento que Deus havia enviado para o grupo. Findo o culto, uma aprendiz de Mical me puxa num canto e pergunta: “Há quanto tempo aquela solista é crente?” — com indisfarçável ênfase negativa na palavra “aquela”...

Influenciado pelo historiador de arte holandês Hans Rookmaaker, Francis Schaeffer discordaria desse tipo de questionamento. Ao analisar uma manifestação artística, o autor de A Morte da Razão formulou outra proposta. “Em vez de perguntar: ‘Este artista é salvo?’, pergunte-se: ‘Esta obra de arte tem qualidade em termos técnicos?’”

A teoria está no livro Cristianismo Criativo? (W4 Editora), de Steve Turner. Sem piedade, o escritor implode várias teorias em voga no problemático meio artístico cristão — se é que ele existe. Com a preguiça mental nas alturas, uma pá de gente prefere atribuir a maioria dos problemas nessa área ao Diabo. O artifício é tão cômodo quanto inútil...

Vivemos um tempo caracterizado pelo ativismo frenético. Mesmo nas igrejas, alguns incautos crêem que a quantidade é substituto adequado para a qualidade. Com isso, o tempo é desperdiçado em programas seqüenciais e os fins são displicentemente substituídos pelos meios. Maquiavel virou apóstolo...

“Acredito que a maior armadilha do Diabo não é nos levar para o mal, mas nos fazer perder tempo. É por isso que se esforça tanto para fazer com que os cristãos sejam religiosos. Se ele conseguir entorpecer a mente do homem pelo hábito, impedirá que seu coração se ligue a Deus.” A reflexão de Donald Miller em Como os Pingüins me Ajudaram a Entender Deus (Thomas Nelson Brasil) ilustra com clareza a rotina de quem labuta no ministério de música. Esfolados e esfalfados, verbalizam nos cultos frases feitas com a mesma mecanicidade que a mão do tecladista repete formações básicas de acordes...

Brennan Manning é ainda mais incisivo ao avaliar a (ir)relevância da igreja: “O cristianismo hoje é basicamente inofensivo, um tipo de religião que jamais transformará coisa alguma”. Em Convite à Loucura (Mundo Cristão), o escritor lembra as palavras de Catherine de Hueck Doherty: “É como se o mundo precisasse de loucos — loucos por Cristo! Loucos pelo amor de Deus! Pois são tais loucos que mudam a face da terra”. Como o panorama desértico será transformado quando milhares de cristãos aceitarem esse convite!...

“Por que deveríamos esperar conhecimento sem questionamento e sucesso sem diligência? Embora generosa, a mão da Providência não nos concede seus dons para seduzir-nos à preguiça. Ela concede seus dons para nos despertar para o esforço.” A advertência de William Wilberforce em Cristianismo Verdadeiro (Editora Palavra) sinaliza que a preocupação com a falta de efetividade já dura bastante tempo. Nascido em 1759, Wilberforce lutou durante 18 anos para ver os escravos livres na Grã-Bretanha e sua trajetória poderá ser conferida em breve no filme Amazing grace. Ah, se todos os músicos fossem além da trivialidade...
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Com o coração incandescido pelas possibilidades, lembro que há esperança enquanto predominam as reticências... e antes de o Senhor colocar seu ponto final em nossa breve passagem por esta deliciosa aventura chamada “vida”.
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texto meu publicado na última edição da revista Ultimato.

Um comentário:

Melos disse...

Texto muito bom, por isso sempre gostei do Sérgio,e da Ultimato,ele sempre pensou e fala o que pensa, a sindrome de Caim ainda tá viva nos arraiais da church, se Abel fizer melhor que eu, eu nao ouço a correçao do Senhor para melhorar, é mais fácil matar Abel. Os loucos por Deus morrem antes...

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