21.8.07

Face a face

“Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido.” Com esta citação da 1ª Carta aos Coríntios, capítulo 13, versículo 12, posta em epígrafe, o cineasta Ingmar Bergman começa seu filme “Através de um espelho”, primeiro da chamada Trilogia do Silêncio, ao qual se seguem “Luz do inverno” e “O silêncio”.

Não apenas neste, mas em todos os filmes do cineasta recentemente falecido, o tema da fé e do silêncio de Deus; da morte, da dor e do tormento; enfim, de tudo aquilo que faz a vida humana auto-transcender-se continuamente têm presença marcante. Bergman, com sua câmera, perseguiu as grandes questões da existência humana, das questões meta-físicas, ou seja, para além da física.

A metafísica é chamada por Aristóteles de filosofia primeira. É a ciência que se ocupa de realidades que estão para além das realidades físicas, aquelas que possuem fácil e imediata apreensão sensorial. São realidades que desafiam o espírito humano, que se pergunta pelo sentido último da realidade, da vida, do ser e de sua própria humanidade.

Bertrand Tavernier, conhecido diretor de cinema francês, disse ter sido Bergman o primeiro a levar a metafísica – religião, morte, existencialismo – para as telas do cinema. Em “Através de um espelho”, a personagem central, Karin, em torno da qual tudo gravita, vive a tênue fronteira entre a loucura e o misticismo. Tem distúrbios mentais evidenciados externamente diante dos outros, mas acredita em seu profundo interior ser visitada por Deus.

O filme de Bergman deixa no ar a pergunta sobre o que é a loucura e em que consiste a sabedoria; o que é a verdade e o que são as trevas da demência; enfim, qual o sentido da vida que se experimenta grávido de transcendência diante de um Deus que se cala e persiste em seu silêncio.

Com olhar agudo e enternecido para com as mulheres, o grande cineasta sueco fez delas as grandes e mais ricas personagens de seus filmes. São elas em geral que carregam e revelam os valores mais profundos e as vivências mais belas. Como em “Gritos e sussurros“, no qual a personagem Ana é a empregada que abriga em seu ventre de mãe as dores sombrias de três irmãs. Em “Persona”, a personalidade de duas mulheres se rompe e se funde.

O passado ao lado do pai, pastor luterano de quem era obrigado a ouvir os sermões, certamente marcou o brilhante menino que mais tarde se tornou um dos maiores cineastas que já passaram por este planeta fazendo imagens em movimento. Com sua câmera implacável e genial, Bergman perseguiu o mistério do mundo e do ser humano, surpreendendo-o em ângulos de grande beleza e profundas interrogações.

Um dos temas que mais o obcecava era a morte. Ela aparece em vários de seus filmes como grande pergunta e sombria interpelação. Porém, no final da vida, Bergman parece haver encontrado a serenidade. "Quando eu era jovem, tinha um medo terrível de morrer", declarou certa vez. "Mas agora eu penso na morte de modo compreensivo. É como uma luz que se apaga. Nada que deva causar muita preocupação".

Neste momento, para Ingmar Bergman, cessou totalmente qualquer preocupação. O Deus que povoou sua infância e configurou em boa parte seu talento cinematográfico é por ele agora contemplado em plenitude. Cessou a metafísica e começou a visão que não termina para aquele cujo olhar por trás de uma câmera produziu tantas e tão belas cenas que jamais serão banidas de nossas retinas.

Bergman não vê mais através do espelho. Conhecia em parte e agora conhece como é conhecido. Vê face a face.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

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