14.9.07

Eu creio, mas tenho dúvidas (3)

Apesar de haverem decorrido dez anos desde sua morte, o rosto enrugado e sorridente de Madre Teresa de Calcutá continua a fascinar as pessoas. Os católicos nela vêem uma referência e os não católicos a consideram com grande respeito.

Albanesa de nascimento, esta mulher de estatura pequena mas energia gigantesca sentiu ainda jovem um vigoroso chamado de Deus, que ocasionou um giro copernicano em sua vida. Ganhando as ruas da miserável Calcutá, onde morava, passou a viver dia e noite a serviço dos mais pobres e miseráveis. A eles atendia com sorriso nos lábios e grande serenidade.

Para comemorar os dez anos de sua morte, chega às livrarias um livro onde se encontram seus escritos íntimos e espirituais, os quais revelam ter conhecido uma noite escura e profunda durante longo tempo. Não encontrava então na oração nenhuma consolação e sentia-se profundamente só.

A descoberta desconcertou muita gente. Como Madre Teresa, a iluminada anciã que parecia viver banhada pela luz divina, pôde escrever em carta a um amigo, em 1979, palavras tão pobremente humanas como: “No meu caso, o silêncio e o vazio são tão grandes que olho e não vejo, escuto e não ouço".

São mais de 40 cartas que cobrem um longuíssimo período de 66 anos. Nelas Madre Teresa escreveu livremente sobre a "escuridão", a "solidão" e a "tortura" em que vivia. Chega a sentir inclusive a ausência da fé, escrevendo estas palavras surpreendentes: "Onde está minha fé, aqui no mais profundo não há nada, meu Deus, que dolorosa é esta pena desconhecida. Não tenho fé".

As especulações começam. Pergunta-se se essa revelação não poderia atrapalhar o processo de canonização de Madre Teresa. Sinceramente espero que não. Se isso acontecesse seria totalmente incoerente com todas as histórias de vida dos santos e o reconhecimento das mesmas por parte da Igreja.

Praticamente todos eles e elas sentiram, em maior ou menor medida, aquilo que a apóstola das ruas de Calcutá experimentou: desolação profunda, trevas interiores, sentimento de abandono. Comprovam-no as vidas de místicos como São João da Cruz, Santa Teresinha de Lisieux e tantos outros.

Agraciada com imensas consolações espirituais em sua juventude, quando chegava a dialogar pessoalmente com Jesus Crucificado, Madre Teresa foi submetida à prova pelo mesmo Deus a quem entregara sua vida, experimentando a solidão e o abandono mais profundos.

Apesar disso, não mudou em nada sua rotina, não deixou de levantar-se nem um dia de madrugada para cumprir seu exaustivo serviço recolhendo doentes, cuidando deles, consolando-os. E também percorrendo o mundo em busca de recursos para continuar servindo.

O fato de haver experimentado tão profunda aridez espiritual e ter permanecido fiel na oblação amorosa de si mesma aos pobres até o fim em nada desmente a santidade de Madre Teresa. Pelo contrário, a confirma. Sua figura aparece mais humana, mais próxima da fragilidade nossa de cada dia. E qualquer um pode senti-la irmã e inspirar-se em sua vida para viver em maior entrega e abertura a Deus e aos outros.

Se só o amor é digno de fé, a escuridão da alma de Madre Teresa é mais luminosa que todas as auroras. Tem a iluminá-la uma vida real de amor feito serviço contínuo, humilde e gratuito, sem nenhuma retribuição, aos mais sofredores.

Possa ela continuar sendo a referência que sempre foi, agora enraizada profundamente na imensa fragilidade da qual partilha e aponta com força e luz maior para o Deus que é Senhor de sua vida e com quem agora está em perfeita comunhão.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco), entre outros livros.

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