15.9.07

Já fui florzinha

Não tenho nenhum embaraço com o sexo. Mijo sem problema em banheiro público, não fico controlando os outros, não me envergonho de usar colares e exibir unhas pintadas, ponho perucas para imitar figuras, tenho grandes amigos que são gays e não me importo de ser indicado como um deles. Não desminto boatos, o preconceito surge da defesa mais do que do ataque.

Minha sexualidade não está à venda. Não vou me sujeitar a um discurso para ser aceito ou compreendido. Homem que é homem não funciona comigo. Homem que é homem não precisa fazer voz grossa, não se mostra ameaçado. Eu me facilito para a vida, me complico para a falta dela.

Por um motivo de franqueza, para finalmente fazer com que a minha vida seja um livro aberto, tenho que confessar que já fui florzinha.

Uma margarida, para ser mais exato.

Perdi qualquer medo do ridículo em uma única dose. Num único dia. Sou o voluntário perfeito para realizar qualquer protesto pelado.

Na escola, antes da abertura democrática, ainda no regime de João Figueiredo, as escolas desfilaram em peso no dia 7 de setembro. Eu ia para escola jogar futebol na Educação Física e no recreio. O professor inventou de suspender os jogos para aprendermos a marchar. Com minhas botas ortopédicas, tive que decorar os nomes das ruas de meu bairro em caminhadas e caminhadas repetindo o ritmo "um, dois, um, dois". A contagem nunca aumentava. Eu me tornei binário sem perceber. É incompreensível exercitar durante meses três combinações monótonas de passos. Mas a mobilização histérica da escola não permitia discordâncias.

De puto da vida para a vida puta foi um passo. A diretora decidiu transformar a primeira série num jardim. Num imenso e colorido canteiro. Ela pediu a palavra no início de uma das aulas: "Meninos e meninas, mostraremos a cidade que somos o jardim mais perfumado". Todo mundo aplaudiu, inclusive eu. que fosse uma metáfora. Que nada.

Na hora do desfile, na concentração, no portão da escola, recebi uma fantasia de margarida. Marcha militar disfarçado de flor?

Meus colegas igualmente ganharam adereços e babados. A cabeça era para ser o pólen das pétalas. A cabeça amarela enfiada na cartolina (meu pijama de estrelas e de lua era mais sociável).

Vi guri de rosa, vi guri de camélia, vi guri onze horas. Mergulhei em apoteótica rinite alérgica. Arrisquei fugir do alinhamento, logo a professora de Educação Moral e Cívica me repreendeu. “Não é momento de ir ao banheiro." Voltei engasgado, o terror subindo do meu estômago.

A escola me obrigou a marchar de margarida pelas ruas em que roubava frutas, assobiava e jogava bolinha de gude. Eu me enxergava como a boneca da minha irmã. Travestido.

Olhava unicamente para frente ou para baixo. E esperava que aquilo terminasse o mais rápido possível, mesmo com aviso que o passeio duraria uma hora a pé.

Pegajosa a determinação do professor, mesclando apito e gritos de afogado. "Acenem ao público!"

Além de margarida, restava-me ser uma margarida acenando. Fingi que era surdo. Ele se aproximou: "Fabrício, não está contente? Seja orgulhoso e mostre que é homem".

Homem? Acenei, acenei, acenei, me despedindo da minha reputação.

Imaginava meu pai: "Fabrício, você é uma florzinha tão linda". Imaginava a perigosa gangue da rua Larvas: "Não toca nele, que ele desabrocha". Imaginava a Priscila, a menina mais bonita, puxando meus cabelos: "Bem-me-quer, mal-me-quer".

O que ninguém esperava é que na metade do caminho começou a chover. Pancadas surdas de água. As fantasias de papelão murcharam, a turma se dispersou procurando abrigo nas marquises, os pais vieram socorrer os indecisos.

E eu continuei marchando e acenando, até o centro. Não sou homem de voltar atrás, de recuar semente.

fonte: blog do Fabrício Carpinejar
arte: Andy Warhol

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