15.12.07

Sobre o costume de agrupar livros

Como se sabe, o conjunto de livros sagrados dos judeus – Tanakh, como se diz em hebraico – aparece nas Bíblias cristãs com o nome de Velho Testamento (”velho”, preste atenção – como que para anular qualquer relevância que os textos possam ter).

Embora consistam essencialmente do mesmo conjunto de livros (católicos e ortodoxos acrescentam uma meia dúzia), os cristãos dividem os livros do Velho Testamento de forma diferente do que os judeus fazem com a sua Tanakh.

Para os cristãos o Velho Testamento está dividido em 3 grandes agrupamentos de textos, os livros históricos, os livros poéticos (ou “de sabedoria”) e os livros proféticos (ou apenas “os profetas”) – nesta ordem.

O principal efeito desta divisão está em que, ao concluir com os profetas, os cristãos reduzem-nos imediatamente a meros arautos do que está por vir (isto é, Jesus e o Novo Testamento). É como se tudo que os profetas tivessem a dizer fosse “prepare-se, porque o melhor está por vir! Se você acha este trailer bom, espere até ver o filme completo – somente nas melhores salas do Novo Testamento”.

Perde-se com isso a característica mais essencial (e mais relevante para os cristãos) da literatura dos profetas: o fato de que eles não apenas predizem que Jesus está por vir (coisa que, quando fazem, fazem muito pouco e sem perceber), mas em grande parte prefiguram o seu discurso.

Jesus foi um cara revolucionário e original, mas quando entra em cena, centenas de anos depois do silêncio do último profeta, ele reflete anseios e visões de mundo que os profetas já haviam exposto de forma muito eloqüente. Na vertiginosa ousadia de suas imagens e propostas, alguns profetas foram na verdade mais longe do que Jesus.

Os judeus dividem o mesmo conjunto de livros em três grupos distintos, a Lei (em hebraico Torah), os Profetas (hebraico Nebiim) e os Escritos (hebraico Ketubim), também chamados metonimicamente de Salmos – nesta ordem. O nome “Tanakh” é na verdade uma abreviatura formada pelas iniciais destas três seções, “T”, “N” e “K”.

A surpresa desta divisão não está apenas na ordem (os Profetas vêm logo depois da Lei e antes dos Salmos), mas no conteúdo. Para um cristão parecerá no mínimo singular ver que os livros de Josué e Juízes são contados entre os profetas, ou que os livros de Ester, Daniel e Neemias são tomados por literatura, ao lado de obras poéticas como o Cânticos dos Cânticos.

Jesus e seus seguidores, que desconheciam a distinção cristã entre Velho e Novo Testamento (esse último naturalmente não havia sido escrito), pensavam nas Escrituras hebraicas nos termos da divisão da Tanakh. Em Lucas 24:44, por exemplo, Jesus explica que era necessário cumprir-se tudo que estava escrito a respeito dele “na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” – ou seja, na Torah, nos Nebiim e nos Ketubim.

Os antropólogos contemporâneos já diagnosticaram o tremendo poder ideológico que há por trás de algo tão aparentemente inofensivo quanto uma classificação. Imagine, por exemplo, as conseqüências de se viver num mundo em que a poesia e a literatura estão mais perto de Jesus do que os profetas, ou em que Gênesis não está classificado entre os livros históricos.

Paulo Brabo, no blog A Bacia das Almas.

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