Abandonei as cicatrizes. Sei onde ficam e me tranqüilizam. Confortam-me. Tenho cinco na cabeça, uma no braço esquerdo e uma última na rótula do joelho. As cicatrizes me adaptam. Identificam o meu corpo, já que não nasci com nenhum sinal de nascença.
Não sou masoquista, não me entenda errado. Ou me entenda errado, que é seu jeito possível de me entender.
As cicatrizes não são provas de quanto se sofreu nesta vida, relógios de bolso a clamar piedosa pontualidade: "quando aconteceu isso?"
Ao contrário, vejo na cicatriz a marca de que me sarei. De como a pele milagrosamente se regenera e me protege. Ela não atesta meu sofrimento, indica que posso me recuperar com a facilidade que sangrei.
Dores velhas contam maldades pelas costas. Não dê ouvido. Dores novas gostam de insinuações. Não dê corda. A dor não tem pescoço e vai pedir o seu.
Abro uma confidência: de tanto mexer nas minhas feridas, elas só infeccionaram.
Não faço mais turismo em minhas dores. Nem convido outros a sofrer de novo comigo, como se fosse uma espécie de justiça o outro penar o mesmo que eu.
Tristeza guardada não cheira bem, raiz rançosa, como roupa guardada, como comida guardada, como amor guardado. Não me peça para chorar duas vezes. Em mim, há mais boca para nadar do que olhos.
É virada do ano.
Não contabilizarei o que não consegui e o que me falta. Não amaldiçoarei um relacionamento que não me ofereceu o que esperava, não cobrarei a juventude que doei a alguém, não justificarei rupturas e fracassos.
Vou procurar a fruteira do bairro. Fruteira não nos obriga a entrar. Está entre a rua e o interior de uma casa. Oferece liberdade para espiar.
Andarei aleatoriamente pelos caixotes e bancas de madeira. Do canto da parede, levantarei uma bandeja azul, bem gasta, para carregar os cachos e as porções. Essas bacias têm muita honestidade.
Atrás do balcão, o dono e seus óculos inquisidores. Retribuo sua desconfiança com meu riso ingênuo. Ninguém resiste a um riso sem palavras.
Não existe nada mais terapêutico do que cheirar as peles das frutas. Superior à maciez de nossas cicatrizes. Convidarei cada fruta a dançar em meu rosto. Não, dançar não é o ideal. Serei antigo.
Convidarei as frutas a me conduzir. Conduzir é mais do que convidar a dançar. “Pode me conduzir?”, perguntarei. Era aquilo que as pessoas diziam quando não conheciam os passos de uma música.
E levarei fruta-do-conde, lima persa, uva rubi. Para não negar a aristocracia de minha alegria.
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