Será que estamos assim condenados a descartar toda idéia de justiça possível? Talvez não. Afinal, existem viciados que conseguem superar sua compulsão. A resposta não chega a ser um segredo. Se, por um lado, ele quer a droga (desejo de primeiro grau); por outro, ele sabe que o vício lhe faz mal e pretende livrar-se dele (desejo de segundo grau). O livre arbítrio talvez exista como um poder de veto dos desejos de segundo grau sobre os de primeiro. Não é à toa que os mais relevantes dos dez mandamentos assumem a forma "não + verbo", como em "não matarás", "não cobiçarás a mulher do próximo".
Os filósofos norte-americanos Harry Frankfurt e Daniel Dennett desenvolvem algumas idéias interessantes de como reconciliar um universo em grande parte determinista (nossas ações sociais, até prova em contrário não são regidas por leis quânticas) com uma versão ainda que mitigada do livre arbítrio. É o salvamento do compatibilismo.
Segundo Dennett, nós temos o poder de veto e o poder de veto sobre o veto, além de boas noções de causalidade, que nos permitem imaginar cenários futuros e projetar-lhes conseqüências de decisões passadas. Não é necessário um milagre para ter responsabilidade.
Como eu disse no início deste texto (que, por sinal, já está ficando mais longo do que eu teria desejado), não disponho de uma resposta definitiva para o problema do livre arbítrio. Só o que procurei aqui foi lançar, de forma infelizmente meio caótica, algumas luzes sobre sua complexidade e alcance. Mal resvalei em todas implicações e pressupostos. Acho, entretanto, que as idéias esboçadas já bastam para que reavaliemos as bases da noção mais comum de justiça que circula por aí.
Nossas inseguranças em relação ao livre arbítrio, que não são poucas, já deveriam nos fazer abandonar o conceito de justiça retributiva. Se não estamos muito certos do nível de controle que temos sobre nossas ações e se é até mesmo possível que cada uma de nossas decisões já esteja escrita desde o início dos tempos, então não faz sentido punir alguém como retribuição à falta cometida. Mesmo que houvesse um Deus a nos dizer insofismavelmente o que é certo e o que é errado, seria preciso não torná-Lo demasiado poderoso, ou Ele se tornaria o responsável último por todos os nossos pecados.
Além da contradição interna à idéia de um deus onipotente e bondoso, temos como subproduto que a justiça, mais do que para expiar culpas, se presta a evitar que o próprio criminoso e outras pessoas voltem a delinqüir. A meta deixa de ser "fazer justiça" (uma completa inutilidade) e passa a ser organizar melhor a sociedade.
Se, por um lado, essa noção utilitarista salva algo da nossa posição de agentes morais, ela não nos eleva para muito além dos cãezinhos pavlovianos, que fazem o que deles se espera sob a compulsão de eletrochoques e outras artimanhas da necessidade.
Assim, antes de sair por aí linchando suspeitos de crimes hediondos ou de pedir uma segunda porção daquela sobremesa deliciosa que entope artérias, pense nas conseqüências. A diferença importante entre nós e os cãezinhos de Pavlov é que projetamos o futuro mais longe.
trecho de O não tão livre arbítrio, texto do Hélio Schwartsman na Folha Online.
2.5.08
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